As Aventuras do Senhor Lourenço (§26 processo disciplinar)

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Há uma simetria estranha entre o encontrar-se a si mesmo e o perder-se a si mesmo. Era assim que Lourenço se sentia, nunca soubera tão claramente o que era, mas nunca também desejara tanto desvanecer-se, sumir-se no anonimato mais absoluto, talvez morrendo como um mendigo (a única verdadeira morte pessoal) ou buscando uma ascese incondicional (a ascese é uma forma de se estar morto em vida).

Lourenço, já o disse, não foi a pessoa mais inteligente que conheci, por vezes era mesmo muito lento a perceber as circunstâncias e tinha uma memória bastante fraca. Mas em certos dias, certas horas, certos minutos saíam da sua mente as análises mais lúcidas que jamais ouvi. Por isso, vestia bem pontualmente a máxima de Valéry: “Sabe demasiado para viver.” Faltava-lhe também a confiança ingénua no futuro, no seu futuro, julgava ainda que o essencial estava contra a vida, ela não aceita, com os seus permanentes saltos quânticos, qualquer verdade, uma angustiante efemeridade envolve toda a realidade, não há como fugir-lhe, pensava. Julgo que Lourenço tinha capitulado emocionalmente.

Na escola, depois das respostas ríspidas que deu a colegas e directora, uma paz podre permitia-lhe ficar no seu canto, absorto, lendo um livro qualquer de filosofia. Por vezes conversava comigo e com o Joaquim, formando-se um trio estranho. Mas esses diálogos concorriam com coisas mais interessantes: eu babava-me por uma colega nova de história, com um rabo firme e macio como mármore; Joaquim continuava a sua aventura sexual a troco de se deixar corromper pela teologia (entristecia-me vê-lo assim, mas ele assegurava-me que estava feliz, “camisa lavada, comida em cima da mesa e sexo oral fabuloso!”). Tinha mudado, sim, mas que importa. Antigamente, com uma palavra quebrava o espírito de qualquer um, era duro como um anjo. Mas não era feliz. Agora lançava bons afectos por cima da multidão, relativizava até a maldade do nazismo, tolerava a estupidez dos colegas, o desplante parvo dos alunos..., tinha uma cara sorriso e poucos vestígios restavam da sua maldita halitose.

Lourenço sempre tinha tido uma relação cordial com os alunos. Uma ou outra resposta ríspida, duas ou três expulsões da sala de aula, mas em geral tudo ficava resolvido com uma conversa a sós, no final da aula. Até que uma turma, a parte vital dela, se virou contra ele. A velha vontade de poder a funcionar. O líder começou por pedir-lhe explicações sobre o que tinha realmente feito ao bombista, se era ou não o herói que todos tinham dito ser. Lourenço respondeu que isso não era tema para a aula. Mas o Ricardo insistiu:

– Estamos nos valores éticos, não estamos? Falamos muito do que se deve e não deve fazer, do que é justo e injusto, do bem e do mal, falamos de imperativos categóricos e de carácter. Por isso, o que lhe perguntamos tem tudo a ver com as aulas.

Ricardo era o melhor aluno da turma, mas normalmente submisso, à maneira de um bom caçador de notas. Agora estava diferente, devia sentir-se, por uma qualquer razão, imune.

– Ricardo, volto a dizer que isso não interessa, é do foro privado.

– Não, stor, depois de aparecer em todas as televisões e jornais já é só privado, nós precisamos de saber se o que defende aqui nas aulas orienta a sua sua vida, não queremos mais um São Tomé.

– Não, Ricardo. Isso é do foro privado.

Mas mais alunos, meninas também, voltaram à carga, queriam compreender, por inquietação intelectual ou percebendo que podiam derrotar o professor, pô-lo a tremer, dominá-lo. O tom aumentou de volume. Lourenço, ainda meio estóico, procurou manter a calma. Até que não se conteve e começou a berrar, chamando nomes feios a alunos e pais. Do episódio reteve-se o insulto persistente a “grande parte da comunidade educativa”, a arrogância com que se pôs a salvo das críticas, o descontrolo pedagógico que se criou, como se fosse um principiante. A Direcção não lhe perdoou e pôs-lhe, com uma satisfação indisfarçável, um processo disciplinar. Lourenço corria o risco de ser expulso do ensino. Se isso acontecesse, teria de regressar para casa dos avós e tornar-se pastor, um pastor poeta talvez, prolongando o inimitável Alberto Caeiro.