Portugal incandescente
/Se falássemos de literatura ou de filosofia, das que se aventuram para lá das grelhas lógicas ou das concordâncias sintácticas, da submissa correcção ortográfica ou da citação exacta, o título desta crónica indicaria um passeio por belos trilhos de ideias e palavras, talvez nos levasse até lugares sublimes, reais ou imaginários, fazendo eclodir o que melhor sabemos ser e fazer, enquanto humanos, sempre primeiro, e portugueses. Infelizmente isto conduz-nos antes para sítios cinzentos, muito cinzentos (uma cor mal-amada porque muita linguagem continua no reino metafórico).
Portugal está literalmente a arder, ou melhor, arde neste país (que nunca é “nosso”, é bom dizê-lo) grande parte daquilo que ainda podia arder: o Trás-os-Montes e Minho mais arborizados, o Douro Litoral e as Beiras Litoral e Alta. Isto deve-se, como referiu Manuel Carvalho no Jornal Público de 14/8/2016, a uma execrável ineficiência política e a preferir-se o lucro fácil e rápido, os arraiais e a Providência; em vez de planear, de prevenir sistematicamente, de realizar um trabalho de base, invisível mas estruturante. Manuel Carvalho acaba, porém, num tom ligeiramente optimista porque remete para o Estado, esse velho mastodonte, e o valor económico da floresta o poder de fazer renascer das cinzas mais uma fénix (ou tirar um coelho da cartola).
Eu, com filtros cada vez mais pessimistas, tenho menos esperança. Parece-me que preferimos o alcatrão e o betão às árvores e arbustos, os estádios de futebol aos jardins, a cidade ao campo. Mesmo a literatura, depois de Miguel Torga e um pouco de Eça e Garrett, abandonou a natureza; ninguém louva ou se interroga sobre a beleza de certas paisagens, a pintura prefere as pessoas, a sociedade ou os conceitos, o cinema as viagens interiores ou a crítica social, a fotografia rostos, pores-do-sol e linhas de horizonte abstractas. Só podemos amar aquilo que compreendemos, diz Maria Filomena Molder, e como compreendemos muito pouco o que ultrapassa o nosso pequeno território biográfico, feito de entretenimento, trabalho, galhofa e queimaduras solares, como nos alienamos ainda mais na ideia de que ser humano é ser tudo, como o contemplador se desqualifica na grelha da seriedade se olhar longamente para a natureza, e depois mergulhar nela para sentir vibrações da alteridade, como não tivemos, nem teremos, um Rousseau, um Goethe, um Nietzsche, repórteres como Albrecht Dürer, Claude Lorrain, Nicolas Poussin, William Turner, Jean-Baptiste Corot, Gustave Courbet, Monet, Renoir, Pissaro, Seurat, Caspar David Friedrich, Cézanne..., homens de suprema inteligência e de amor incondicional às forças vitais da flora, aos arrepios que a montanha provoca num caminhante solitário que se elevou acima da sua condição de existente, como não temos nenhum partido ecologista sério, como erigimos em modelo de vida um apartamento na cidade (melhor, ainda assim, do que as casaronas da periferia, colonizando o dobro do solo que seria necessário), o guarda-sol na praia, a mariscada e o gin, os festivais de verão e as touradas, os centros comerciais e os futebóis... Como gostamos de viajar velozmente através do Marão (o novo túnel evita os “perigos da montanha”) ou do Alvão, parando apenas nas áreas de serviço para energizar as máquinas. Preferimos isto tudo a uma consciência e vivência alargada, acolhendo, e recolhendo-nos, no não-humano, numa encosta de urzes ou giestas ou num ribeiro nascente, num montado de sobreiros ou numa mata de carvalhos, num souto de castanheiros ou num bosque multiforme, na fauna selvagem (mais uma metáfora) ou nas estrelas que pontuam, há milhões de anos, os céus e que agora escondemos com os holofotes da iluminação pública (para “vermos de noite como de dia”, isto é, para não vermos o que a noite é capaz também de mostrar, fonte de inspiração dos grandes mestres da palavra, por exemplo), no lado abrigado de uma fraga que pontua um cume montanhoso. Como preferimos isto tudo, ficamo-nos pela identidade reduzida de um eu cheio de autocontentamento, uma minúscula biografia individual sem exterior, reconhecendo mais facilmente o lateral direito suplente do Benfica do que as espécies arbóreas autóctones representativas da nossa flora.
Neste drama (os bombeiros e os militares gostam da expressão “teatro de operações”) pícaro ainda há lugar para a indignação, não a sensata, como deve ser sempre, mas expelida aos berros de “ninguém faz nada por isto!” Parecem ser esses “ninguéns” que destroem o país, não eu ou tu, ele ou nós, mas esses gajos que podiam prevenir ou apagar rapidamente os incêndios para que este fumo não incomode, já basta o do churrasco ou da sardinhada.
P.S. 1 Claro que há uma hierarquia na responsabilidade: pesa mais a quem permitiu a pinheirização, primeiro, e a eucaliptização, depois, do centro e norte de Portugal; a quem comprou meios de combate aos incêndios obsoletos; a quem preferiu, sem critério, o combate à prevenção; a quem subsidiou e subsidia cantores pimbas para as festarolas em vez de apoiar associações ambientalistas que intervêm no terreno (e há bastantes, sem reconhecimento ou suporte); a quem gastou rios de dinheiro em estádios ou auto-estradas que estão às moscas; a todos os políticos que tiveram o poder de fazer alguma coisa e não fizeram nada, por indolência, calculismo eleitoralista, convicções destorcidas, análises estúpidas. Não quero, pois, reproduzir a amálgama de “todos somos culpados”, mas também não devo alargar muito o campo da inocência.
P.S. 2 A obra de arte que abre este artigo é de uma pintora, Isa Lotte, que reúne actualmente nos seus trabalhos duas das suas preferências: árvores e fogo. Em simbiose estética. Passar esta simbiose para a vida é a minha utopia. Não escolhi, pois, o quadro por cinismo.