Depois da representação
/(a partir do estilo de "O Torcicologologista, Excelência", de Gonçalo M. Tavares)
- Também está tudo excelente, excelência! Obrigado!
- Gostou da representação?
- Parece-me que este ano foi igual à do ano passado! Mas vossa excelência sabe como sou distraído!
- Tenho também a mesma ideia que vossa excelência, mas no meu caso, sou sempre surpreendido!
- Ainda que a história se mantenha?
- Ainda que a história se mantenha...
- Ainda que as personagens sejam as mesmas?
- Ainda que as personagens sejam as mesmas...
- Ainda que a moral da história seja a mesma?
- Ainda que... bem se se mantém história e personagens, excelência, manter-se-á a moral também!
- Desculpar-me-á a correcção excelência, mas tal conclusão não é válida para as personagens, apenas para a história!
- Ainda assim surpreende-me!
- A sua surpresa é para mim surpreendente! Amnésia?
- Não, lembro-me perfeitamente da do ano passado. E da do ano antes desse!
- Continuo surpreendido excelência, mas a surpresa mudou agora de coroa!
- Até dos actores me lembro!
- Agora surpresa e coroa mantém-se no mesmo trono.
- Não é a história, nem a moral que me surpreende!
- Continuo o meu relatório preciso de actividades internas: Mantém-se a surpresa, mas desta vez está completamente perdida!
- Acalmo prontamente vossa excelência...
- Surpreendida!
- Surpreendida... O que me surpreende é a avidez com que vejo a representação (história, personagens, actores, cenário) todos os anos!
- Avidez!?
- Sim! É como um conforto excelência!
- Um calor?
- Nem exterior, nem interior!
- Nem poético da sua parte!
- Nem da sua!
- Concordo!
- Concordamos!
- Mais um conforto excelência! Mas partilhava com vossa excelência, é como se fosse uma manta, uma lareira, um doce, uma refeição, um aconchego, um abraço, um banho de sol na praia...
- Ainda que o sol esteja muito quente?...
- Ainda...
- Ainda que se queime com o sol?...
- Ainda que me queime com o sol...
- Mesmo sabendo que se vai queimar com o sol?!...
- Mesmo sabendo que me vou queimar com o sol!
- De antemão!
- De sobre aviso e sem protector, excelência!
- Desde quando?
- Desde sempre, desde que me lembro, desde que me sabe bem!
- Mesmo que a representação tenha três condenados à morte?!
- Injustamente!!!
- Bem, em bom rigor apenas um, e depende a quem se pergunta!
- Ainda assim excelência, faz parte da beleza da história!...
- Ainda que se acuse um inocente!
- É poética!!
- Ou comédia, ou tragédia, excelência!!!
- Tragédia seguramente!!!
- Acho que até aqui se difere também na opinião dos inquiridos! Mais o quando do que ao quem!
- Assim seja, excelência!
- Mas o aconchego chega-lhe também pela exortação à dor e à morte!
- É apenas um prelúdio da história, excelência! Não julgue uma história sem a sua conclusão!!!
- Mas a representação fica-se apenas pela condenação, flagelo e morte!
- Assim o diz!
- Assim o é!
- Ainda que não sejam qualidades louváveis?
- Ainda que nem sequer sejam qualidades!
- Assim o diz, da boca da verdade!
- Mas não se esqueça de Domingo!
- Domingo não faz parte da representação de hoje!
- Excelência...
- Não vi nada disso hoje! Vossa excelência viu?
- Não, não vi!
- Apenas viu condenação, flagelo e morte! Ou saí antes de tempo?
- Saímos os dois no fim da peça, excelência!
- E mesmo assim reconforta-o?
- Sim!
- A dor, a condenação, o flagelo e a morte!
- Assim o disse... Mas como prelúdio... Como um prazer antecipado do que vai acontecer!
- Como aperitivo? Como preliminares?
- Sim, quase como isso!
- "Quase" asseguro-me que é a palavra chave!
- A que se deve tal segurança!
- Vossa excelência vai hoje reconfortado para casa?
- Muito, gostei muito da peça!
- Deitar-se-á descansado e satisfeito?
- De barriga cheia excelência!
- Belo ponto! Pego aí mesmo! E numa refeição,... por exemplo, o jantar de hoje!
- Que tem o jantar de hoje?
- Teve aperitivo?
- Não devendo, teve sim senhor!
- Dos bons?
- Dos excelentes! Um martini, amendoins e bolachas salgadas!
- Um luxo!
- Uma verdade!
- E ficaria bem apenas com o martini e os salgados?
- Com a fome com que estava, parece-me impossível!
- Inverosímil!
- Para qualquer outra excelência que mo perguntasse! Seria impossível acreditar, mesmo que lhe mentisse com todos os dentes!
- Não se deitaria satisfeito!
- Nada! Impossível!
- O jantar foi bom!?
- Rico e farto! Óptimo, ainda que exagerado, reconheço, mas foi tudo isso!
- Ou seja sem jantar, não se deitaria satisfeito! Mesmo que amanhã soubesse que jantaria fartamente?
- Impossível! Nem só de pão vive o homem! Nem de expectativas! Por isso há que vir todo o acompanhamento do pão! Aliás, deixemos o pão! Esse sim é que acompanha!
- Bravo excelência! É bom ouvi-lo falar. Mas o que diz traz-lhe um problema!
- Vários...
- Exacto, o primeiro e o mais proeminente, comecemos pelo importante, é que a analogia que fez não é, digamos..., verosímil, para usar as suas próprias palavras.
- Estou perdido!
- Ora, vossa excelência disse que hoje ia reconfortado para casa, não é verdade.
- Sublinho!
- Mas que a peça, e excluo o jantar, ainda que comparada a um aperitivo para Domingo, o reconfortava!
- Subscrevo...
- Mas acabou de dizer que se hoje se deitasse só com um aperitivo, desta vez no estômago, não lhe chegaria! Nem mesmo sabendo que jantaria amanhã! Como no Domingo!
- Disse...
- Ou a comparação não é boa, ou a explicação de vossa excelência é parca...
- Excelência... Melhor também não lhe sei explicar... Mas é verdade...
- Mas a segunda parte, ainda que menos importante, não sei se a considero menos gravosa. Ou vice-versa!
- ...
- Consideremos que o reconforta.
- A peça.
- Essa mesmo. A sua mensagem.
- Sim...
- Vossa excelência reconfortou-se com a dor, a injustiça e a morte. Considerando-as como não qualidades ou sentimentos que não se enalteçam.
- Como aperitivo...
- Mas aperitivo com o qual dorme bem hoje e reconfortado!
- Assim o disse... e assim o sinto...
- A minha surpresa, para além da sua, é esta mesmo excelência!
- E minha... Não creio que me tenha apercebido!
- E a mim, não creio que este meu raciocínio me tenha inibido de, mesmo assim, aqui ter vindo hoje...
- Estranho... Já bebeu do vinho quente da paróquia excelência?
- Não, mas ouvi dizer que este ano experimentaram especiarias novas!
- Venham de lá esses canecos!
- Bem lembrado excelência!
- É sempre um prazer beber bem acompanhado!
- E reconfortante!
- E reconfortante...