Analítica da actualidade
/Uns dias atrás, alguém, visivelmente desocupado, teve a ousadia de me perguntar o que significava a “Analítica da Actualidade” com que assino contextualmente os meus textos aqui no blog da Enfermaria.
Não senti qualquer impulso para procurar uma resposta (creio que envelhecer também se faz desta boa demissão, refinada, que quando é mal entendida aparece como desdém ou outra qualquer forma de sobranceria). Mas lá declarei a custo, “é o que as palavras dizem”. “Está bem, mas o que entendes por analítica e actualidade?” Continuou, em modo de desafio, o meu interlocutor. “O que toda a gente entende!” Respondi, novamente a custo. “Quem é essa toda a gente? Isso não existe, é uma abstracção abusiva.” Asseverou o meu contendor (comecei a considerá-lo assim), com um fiapo de riso cínico no lábio superior. Resolvido a acabar de vez com a conversa meio fiada, disparei: “claro que é uma abstracção abusiva, como a tua pergunta, aliás, abusiva e abstracta; é para isso que serve a linguagem verbal, abstrairmo-nos da matéria bruta que forma as coisas e abusarmos da representação, generalização, simbolização... Tudo o que ela transporta é um abuso”. “Boa, agora desconversas, entraste finalmente na tua especialidade, desconstruir”, retorquiu o cavaleiro negro. Tentei fulminá-lo com o olhar mas não consegui (já viram algum raio sair de olhos cansados?). Tive depois o ensejo de virar costas e desaparecer, mas, por enquanto, o espartilho moral impediu-me. Socorri-me então de uma palavra-moda entre os adolescentes: “whatever”. E fui-me, fluindo entre uma multidão de alunos que sonham, sem olharem ao lugar, com vidas heróicas (às vezes digo, fingindo um lapso, “eróticas”, sabendo que eles vivem numa estranha embriaguez emocional).
Bem vistas as coisas, claro que ele (é um homem barbudo, com pêlos nas costas e tudo) foi oportuno no questionamento, mas ao querer aliar a oportunidade ao desafio, ao querer ver-me fracassar sem verdadeiramente me passar uma rasteira (há compensações quando se é vencido com batota), transformou o conveniente numa pequena indecência que não me apeteceu aturar. E mesmo que já não seja austero como uma lâmina, lá vou lançando os meus ataques estóicos.
Aqui entre nós, talvez, por verdadeiramente não gostar dele (porque reaviva o velho paradoxo de um corpo-bola irradiar um semblante triunfante), não lhe quisesse dar a ouvir esta magnífica nota de Peter Sloterdijk (grande herói do inconformismo regulado): “Não somos mensageiros do absoluto, mas indivíduos com ouvido para as detonações do nosso tempo.” (Peter Sloterdijk, O Sol e a Morte, diálogos com Hans-Jürgen Heinrichs”).