Depois de Kaprow

Allan Kaprow, YARD

Allan Kaprow, YARD

“Here, also, the traditional notion of the uniquely talented artist (the genius) was suspended in favor of a tentative collectivity (the social group as artist). Art was like the weather.”

Allan Kaprow, 7 Environments, 1991

 

para Manuel Alves Pinto

1

descobriu-se recentemente
que duas obras de Damien Hirsh
em exposição na Tate Modern
duas enormes caixas em vidro
numa a carcaça de uma vaca
na outra a de um bezerro
conservadas em formaldeído
têm estado a libertar gás tóxico

não se sabe se o happening
representou um risco real
para a vida humana

a julgar
pela expressão dos animais
olhos vítreos
sem curiosidade medo
ou sequer indiferença
com ou sem fuga de gás
há motivos para apreensão

 

2

turismo artístico
é perigoso
potencialmente mortal
muito boa gente já morreu de turismo artístico
ou ficou estropiado para a vida
deve
a todo o custo
ser evitado

conheço um homem que ainda hoje
fala com horror do que sofreu
na sua primeira viagem à Grécia
já passaram quase trinta anos
mas basta-lhe beber um copo a mais
ou apanhar um pouco de sol
e é vê-lo a chorar
enquanto descreve pormenorizadamente
a subida à acrópole
ali foi onde aOresteia foi pela primeira vez representada
ali onde Sócrates foi condenado
foi chegado ao local
em que Paulo se dirigiu aos Atenienses
que se nos acabou a água
e os abutres começaram a sobrevoar o nosso grupo

e por aí fora
durante horas
com as lágrimas a escorrerem-lhe pela cara abaixo

 

3

se não consegue reprimir o desejo
de transpor os confins da sua cidade
com o fim de contemplar maravilhas distantes
faça ao menos por conservar a sua dignidade
para esse efeito
alguns conselhos

 

1.      planeie a viagem
estude um guia da cidade
marque no mapa
os locais que deseja visitar
de antemão
leia livros sobre as obras de arte
que deseja admirar
não poupe nos mantimentos
sobretudo
tenha sempre água consigo
aprenda a língua local
aprenda grego antigo
aprenda artes marciais
aprenda meditação transcendental
veja a previsão do tempo
compre uma faca
como a do Rambo
leia o horóscopo

 

2.      escolha roupa apropriada
se acha que fica ridículo de calções
provavelmente tem razão
e não é por estar no estrangeiro
que vai parecer menos ridículo
não poupe
nas mudas
de roupa interior

 

3.      nunca vá em excursão
fuja de guias
como da peste

 

4.      mostre respeito pelos locais
não caminhe como se tivesse
todo o tempo do mundo
pode não ter nada de melhor para fazer
não quer dizer que as outras pessoas não tenham

 

5.      não tire selfies num museu
não use arte
como cenário da sua fronha risonha
é feio
como um cão
a marcar o território
um cão mijão do belo
cá entre nós
você é desinteressante
quase tão desinteressante
quanto eu
mesmo que não consiga
apreciar arte devidamente
não precisa de sentir vergonha
são poucos os que conseguem
e pode sempre aproveitar
para descansar da sua banalidade
é o que eu faço
agora não a esfregue no mundo
não conspurque a arte
com a sua banalidade

 

6.      se vir alguém com um selfie stick
e a oportunidade se proporcionar
de lhe passar uma rasteira
sem dano para si
não hesite

 

 

4

tínhamos visto
mais cristos crucificados
e senhoras holandesas
nos últimos dois dias
do que julgara
humanamente possível
fumávamos um cigarro
no pátio interior do Reina Sofia
e tentávamos ajuntar as esparsas
farripas de juízo que nos restavam
para lançar a derradeira investida
ao modernismo
foi então que vimos a obra

parecia
uma pilha de pneus gastos
dispostos sem ordem aparente

o que é isto?
são as arrecadações?
é uma vergonha um museu destes ter isto à mostra

mas não eram
as arrecadações
Manel

não
não pode ser
isto não é arte
como é que as pessoas
podem achar que isto é arte?

cada vez mais exaltado
a quem passava
crees que esto es arte?
como puede ser?

à segurança que se aproximava
señorita
está en crer que esto es arte?
neumáticos
son neumáticos

e a boa senhora olhava
espavorida
para nós
como quem pergunta
este cavalheiro é bom da cabeça?
e nós sem conseguirmos conter o riso
neu-
má-
ti-
cos
que vergüenza

 

5

se não é suficiente
ocupar estas mãos que vagueiam
à margem
de uma solidão de amantes
a arte
que sirva ao menos
para sacudir
a tirania
da pacatez da paisagem
de um dia
demasiado ameno

isto é poesia?
isto é poesia?

ficaria feliz
de ouvir
Manel
a sua voz
vibrante de indignação
mas temo
que uma gargalhada
terá de bastar