Recensão: É Agora Como Nunca. Antologia Incompleta da Poesia Contemporânea Brasileira

1- Adriana Calcanhotto organizou uma antologia de poesia contemporânea brasileira. O resultado é o belíssimo É Agora Como Nunca. Antologia Incompleta da Poesia contemporânea Brasileira. Para o jornal Folha de S. Paulo, pouco antes do lançamento no Brasil, Fevereiro de 2017, pela Companhia das Letras (em Portugal foi editada pela Cotovia), ela que realizou parcerias com nomes como Waly Salomão, Augusto de Campos e Antonio Cicero, consolidando a sua carreira musical imersa na poesia, revela o sentido que tem compor-se uma antologia (“incompleta e autoral”). Reproduzo algumas ideias do artigo: “Leitora de poesia diletante”, quis fazer um livro pessoal, decidido pelo seu gosto pessoal (lembro que, em oposição, os juízos de gosto kantianos são universais), contendo num “único volume” o que queria ler durante as férias. Critérios hedonistas, pois. Para isso reuniu 41 poetas brasileiros nascidos entre 1970 e 1990. Poetas novos, novíssimos, inacabados, obrigando a autora, já durante o processo de compilação, a alterar escolhas porque um poema mais recente se sobrepunha ao mais antigo. Jovens poetas com as mãos amassando o barro linguístico, sem grelhas, onde o “verso livre [flerta] com a crónica”. Claro que há menções a Drummond, Leminski e outros, mas também “à grã-mestra Wikipédia”. É isso que, nas palavras de Adriana Calcanhotto, traz “um desassombro, uma não cerimónia com a poesia, usam palavras que não parecem, em tese, pertencer à poesia, coisas assim”. Finalmente, a autora revela, agora por ausência, outra característica desta antologia: a pouca atenção dada à política (pelo menos nos “enfadonhos sentidos partidário ou panfletário”). Surpreendente, até pelo período conturbado que se vive no Brasil. De qualquer forma, diz-nos Adriana, “Eles vivem no mundo de hoje e escrevem poesia, isso é um acto político. Poderiam estar calados.” Algumas destas ideias são retomadas na breve nota pessoal que abre a obra impressa, onde, além de pequenas indicações sobre a sua construção, acrescenta algo que me parece justo: “Depois do fim das vanguardas, ‘ficou ainda mais difícil’ escrever poesia.” Aumentaram as dificuldade porque, trata-se agora da minha voz, não é possível, sem que isso saiba a déjà vu, continuar a desconstruir os modelos assentes em sentidos reconhecidos como clássicos (ultra-classificações) ou regressar, num suspeito conservadorismo, às velhas fórmulas de codificar a linguagem poética.

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2- Talvez eu me situe, enquanto leitor, entre T.S. Eliot e Marcel Duchamp: para o primeiro, “a significação de um poema existe nas palavras do poema e apenas nessas palavras”; para o segundo, mutatis mutandis, “São os observadores que fazem o quadro”. Atender às palavras e reconhecer que sou eu que acolho o poema, um eu inscrito num determinado horizonte de expectativas. Talvez não exista o leitor universal, como, em oposição, não é possível relativizar sem qualquer freio a interpretação. Trata-se de um perspectivismo sob controlo, equilíbrio frágil entre objectivismo e subjectivismo. Por isso, vou falar-vos da minha leitura, não sou, nem quero ser, um crítico profissional, que terá, se levar a sério o seu papel, de seguir Kant e a necessidade de escrever coisas que valem universalmente.

2.1- Mesmo assim, sem cair numa contradição estéril, a poesia, mais do que a prosa, faz reverberar em cada leitor atento qualquer coisa de eterno. É verdade que no caso desta antologia, resvalando tantas vezes, como foi dito, para um certo tipo de crónica, nos afastamos da metafísica, mas não irremediavelmente. São exemplos de descrições dentro da história (do tempo e do espaço, os grandes inimigos da metafísica) a “CASA DAS HORAS” de Victor Heringer, a “ANSIEDADE QUANTO A UMA ACADEMIA” de Ismar Tirelli Neto ou a “ZTARATZTARATSZTARATZTARATZTARATZTARATZTARATZ” de Marília Garcia. Em contraste, há uma boa dezena de haikus que aspiram ao a-histórico, mesmo quando se referem ao mundo das coisas e acções prosaicas ou fazem centelhar ideias e sentimentos do quotidiano. Esta ambivalência converge, contudo, para um campo comum: desenhar um método exploratório, investigando objectos e afectos, para revelar e manifestar as parcelas do vivido. A antologia foi, pois, retirada das circunvoluções do real, ainda que pareça haver uma deriva sem finalidade. Hoje, as escatologias assumiram a derradeira condição de ilusões espúrias. É isso que nos diz Leandro Durazzo: “[…] não acho justo / mas é / natural / que as coisas não fluam // nem tudo é rio”.

Porém, constrói-se uma espécie de micropolítica, de mundivisões e sugestões de organização social e mental. Não, como muito bem refere Adriana Calcanhotto, dentro dos habituais enquadramentos ideológicos e partidários, mas trabalhando numa analítica intensa e precisa para aconselhar passagens viáveis de dissensos a consensos (imperfeitos). Reconhecendo a irredutibilidade do mundo (real) e de nós nele. Destaco a quase epopeia de Donny Correia, “KANCER (SOLILÓQUIO)” sobre o compromisso possível entre um organismo e o seu parasita, o cancro (começa com a estrofe: “Quando me convenci / de que eu era imortal / veio o Doutor e disse: – É câncer...). Sem utopismos, pretende-se somente que o vital funcione um pouco melhor, escusando as velhas teodiceias que pretendiam extirpá-lo do mal, de todo o mal (em vão, como sabemos).

Destacaria outra linha de identidade, a de várias vezes haver uma mise e abîme da poesia. Pergunta-se pela poesia na poesia. Ou melhor, os poemas servem também para questionar, em sentido amplo, aquilo que incarnam (a poesia). Uma poética habitada pela metapoética. Velho dispositivo literário, é verdade, mas aqui essa torção sobre si, esse petrificar-se no reflexo de si conjura, mais do que é normal, a rendição ao puro exterior, como por vezes parece estar na moda. E não se vislumbra qualquer decisão forçada, este gesto estético (e político?) encaixa perfeitamente na Stimmung do livro.

Finalmente, sem querer esgotar a complexidade da obra, o uso da linguagem, seguindo Adriana Calcanhotto, parece fora da erudição poética, constroem-se poemas com ferramentas linguísticas simples. Mas busca-se também uma voz própria, cada um dos poetas experimenta uma espécie de idioma privativo feito dos materiais linguísticos reciclados do dia-a-dia (prosseguem, noutros termos, a dissolução da poesia de massas). Todos procuram a sua própria tensão e energia linguística, sabendo que, apesar de vivermos no tempo do desnudamento compulsivo, permanece sempre algo de inviolável, de impenetrável e de decisivo em cada indivíduo, neste caso em cada autor.