Dos livros que são empilhados para dar a alguém o mais depressa possível

PC144968.jpg

Que desanimante é comprar uma pilha de livros e não desfrutar da sua leitura. O altamente elogiado Morte Súbita, do mexicano Álvaro Enrique, que tentei ler uma, duas, três vezes, sempre com vontade de o abandonar no comboio, sabe a Foster Wallace e a Bolaño mas é o sabor a micro-ondas que se sobrepõe, sofre de um mal pós-modernista que à literatura subtrai graça e beleza em prol de uma vontade de seguir estruturas, de parecer inteligente. Obras infestadas de nomes e retumbantes conceitos, personagens históricas, histórias apócrifas – Francisco Quevedo a jogar ténis contra Caravaggio-, e as sagazes lucubrações a puxarem pelo sorriso do leitor, contribuem para a desvalorização de uma das potencialidades da literatura: contar a vida recorrendo a uma prosa elegante, densa em termos emocionais e intelectuais. Livros que figurem como recomendáveis pelos periódicos nova-iorquinos não devem cheirar tanto a bolsa de criação literária. Lendo Guerra e Paz, o leitor é confrontado com a vida vista por cima, a vida da história, dos russos contra Napoleão, e com a vida pequena, a vida do príncipe moribundo, da mulher em busca de amor, do cobarde que enriquece, e é destas duas vidas que se extrai prazer e vontade de reler sempre o mesmo livro. Com Álvaro Enrique, folheia-se a página, boceja-se, diz-se “que escritor tão prendado”, e enterra-se o livro antes da página cinquenta.

Erro típico de quem acabou de chegar ao fenómeno Barnes & Noble é pegar num livro considerado #1 New York Times Bestseller na expectativa de o vir a ler com gosto e talvez aprender, ou pelo menos sair da leitura com a sensação de ser melhor pessoa. Susannah Cahalan, jovem jornalista, sofreu um mês de loucura e publicou, já recuperada, pensa-se, Brain on Fire, My month of Madness. Hipocondríaco e dado a comprar livros em promoção (o livro em promoção em Nova Iorque raramente baixa dos sete dólares e cinquenta), abanquei no parque de Union Square convicto de que resolveria anos de demência e paranóia e enxaquecas, etc. O livro faz sentido para quem o escreveu e para os editores que lhe aplicaram a régua e o esquadro da escrita criativa. Os parágrafos sucedem-se sem que o leitor seja informado de que doença padeceu Susannah, chega-se a pensar que a moça se transformará em insecto a dado momento, tal o suspense e o tom melodramático com que são apresentados os sintomas da “doença”. O thriller desvanece-se aos poucos, ficando o leitor cada vez mais convencido de que esta é mais uma sopa mediática que as boas editoras americanas impingem a quem, como eu, não tem mais que fazer do que gastar dinheiro em banalidades com “a happy ending.” Tudo acaba bem, primeiro porque Susannah recuperou da loucura para publicar o livro e se tornar milionária, depois porque não se chega a saber em que consistia a loucura de Susannah. É muito pouquinho, para um ensaio.

 Escrever sobre o desperdício A Short Guide to a Happy Life, de Anna Quindlen, demora quase tanto como a sua leitura. Foi provavelmente publicado num ano em que as editoras tinham muito dinheiro para gastar em livros de capa dura com meia-dúzia de frases dentro. Entre o supermercado e a mesa onde me sento a comer cereais, percorro cerca de meia milha, mas a leitura deste panfleto carregado de citações positivas para o alto-astral durou vinte metros.

 Para escrever sobre Ben Lerner o cidadão precisa de se benzer e de pedir perdão a James Wood, que em determinada recensão na New Yorker incensou o autor de 10:04, obra que tantas vezes me pôs às avessas comigo e com o mundo que me rodeava. Ben Lerner é escritor talentoso, a prosa é fluida, lê-se prazenteiramente, mas quando se passa do primeiro ou do segundo capítulo começa-se a vislumbrar o breu, as trevas, a cefaleia desata a inchar as têmporas, e só dois analgésicos resolvem a situação. Histórias de amor ou de doenças – há um escritor doente que deseja ter um filho e que sente amor, embora por vezes admita que o que aprecia é fazer amor – descambam nos costumeiros guisados pós-modernistas: biologia, geologia, filosofia, doenças raras, resmas de títulos, de nomes, de conceitos, ideias exóticas, piadas muito bem esgalhadas. Ben Lerner poderá ascender a génio meditabundo caso consiga conjugar uma lista telefónica, a Enciclopédia Britânica e uns fogachos de boa prosa num só volume.

 Sinto falta do tempo em que, adolescente, abria a revista Maria e deparava com celebridade X dizendo que guardava o verão para as leituras, ou leitura, que o verão eram só três meses e o Equador, de Tavares, não concedia espaço para outras literaturas na estante. E antes da adolescência lia o Tio Patinhas e amava. Os irmãos metralha, que primor. Esse mesmo amor regressou com os Tolstói e os Dostoiévski. Mas ler um livro em Nova Iorque, especialmente um livro que seja recomendado, que apareça em tops, é como visitar um desses cursos de escrita criativa, num sábado à noite, no meio de um pesadelo, e só desejar nunca ter lido nada, nunca ter gasto os olhinhos na leitura.