Da admiração
/A admiração habita no mundo da ética, sendo simultaneamente um valor e um modo de nos relacionarmos com outrem (não apenas humanos). Hoje, parece fora de moda, a hipertrofia da autoestima orientou a admiração para dentro, acomodando-a nas diversas modalidades do narcisismo. No máximo, quando se trata de pessoas, o outro é um espelho onde nos podemos admirar.
Pelo contrário, a verdadeira admiração é uma forma de buscar o grande, o belo, o bom..., e desta forma ela é inspiradora, torna-nos melhores. Por isso, Victor Hugo queria tanto admirar como ser admirado. Este discurso, um pouco lamechas, eu sei, pode ser irradiado com uma nota de 1880 de Friedrich Nietzsche: “Para o inferno com todos os imitadores e seguidores e bajuladores e admiradores e devotos!” Mas esta incandescência retórica, de alguém que foi tão pouco admirado em vida, não resiste à força da definição que nos deixou René Descartes nas Paixões da Alma: “A admiração é uma súbita surpresa da alma que a leva a considerar com atenção objectos que lhe parecem raros e extraordinários.” (II, 70; cf. ainda 53 e 71). Objectos ou pessoas, claro. Reconhecimento feliz, pois, do extraordinário, que permite a constatação venturosa da superioridade do outro. Mais, a dinamite nietzschiana cede à sua própria disposição apolínea, no mesmo ano da nota anterior refere que “Se não soubermos ler um livro pelo amor do outro, como será pobre! Devemos senti-lo como o autor.” (Isto levanta interessantes questões hermenêuticas, que não cabem aqui).
Mas é nesta valorização do exterior, do que está fora de nós que as coisas se toldam, em 1968 Gilles Deleuze dizia que “A doença das pessoas de hoje é que elas já não sabem admirar nada”. (O medo da superioridade do outro conduz ou ao desdém ou à inveja). No seu comentário a Nietzsche (Nietzsche et la philosophie, 1962), mostrava como os tempos estavam propícios a odiar tudo o que era amável ou admirável, diminuir tudo através de facécias e interpretações vulgares, ver em todas as coisas uma armadilha, sobrevalorizando a prudência. Contra isto, disse mais tarde que ao trabalhar sobre um autor procurava “nada escrever que o possa afectar de tristeza, ou, se está morto, o faça chorar na sua campa.” (Conversações). E isto, é bom que se diga, não o impediu, como não impedirá ninguém, de ser lúcido ou crítico. A admiração, para quem não é minúsculo, eleva, mesmo quando não alimenta a emulação. Ao contrário da mesquinhez, que amplifica, ou inventa, a penúria e o defeito, a admiração destaca o extraordinário, como escreveu Descartes. E é esse “extraordinário” que encontro na natureza ainda relativamente natural, nos animais e em certos humanos (sobretudo aqueles que conseguiram tornar-se heterogeneamente eles mesmos). Com alguns, para imensa felicidade minha, costumo conviver. Uma felicidade espontânea, por estar junto deles, ouvi-los e vê-los. Uma felicidade diferida porque me inspiram, me permitem pensar e ser melhor, mesmo quando não lhes rendo inteira justiça. No final, espero que a minha admiração lhes dê algum retorno, que não seja eu o único favorecido.