Carta póstuma

Lídia,

 

   de todas as perguntas que me fizeste, nunca me perguntaste se eras feliz. Estranhei-o a primeira vez em que fizemos amor – e não porque o quarto fosse demasiado pequeno, a luz demasiado pálida, eu demasiado gordo ou tu demasiado jovem. Talvez me digas que estavas com vergonha de mim, mas hoje sei que não foi essa a razão. Na última carta perguntavas-me porque nunca mais nos deixámos, mesmo quando foste para Boston e nunca mais voltaste, mesmo quando compraste aquele horrível Mercedes, dois homens e quatro filhos. Hoje sei porquê: foi porque nunca me perguntaste se eras feliz. Naquele dia – lembras-te?, tenho a certeza de que sim – tínhamos ambos bebido de menos. Apenas uma tímida cerveja a meias, naquela tasca demasiado limpa, a cheirar a plástico e a luz fluorescente. O empregado perguntou-nos de onde éramos. Dissemos a verdade: éramos dali. Falta de imaginação. Culpo aqueles guardanapos que se usavam na altura, um papel ríspido que agredia mais do que limpava. Ficava a sujidade nos lábios. A tua carta pôs-me a pensar nesse dia. Já andávamos aos beijos há algum tempo, e eu dizia-te que podia esperar, que não tinha pressa. Que besta. Tinha quase cento e quarenta quilos, mais dez anos que tu, um chapéu de quadrados e um perfume insuportável. Tu estavas na tua fase gótica, metro e meio – nunca mais cresceste – e tacão de três metros. Peroravas o fim do mundo, os masturbadores de autocarro, as porradas do pai, os toques do tio, as bebedeiras da mãe. Mas eu queria levar-te para a cama e teria ouvido qualquer coisa. Aquele café tinha uma fachada toda em vidro, e recordo-me que um cão velho e doente parou mesmo à frente e pôs-se a cagar, com aquele ar condoído e idiota que só os cães têm quando estão naqueles preparos. Lembro-me porque estava a olhar para ele quando disseste que me amavas. Não me perguntaste se eras feliz, não, tinhas de dizer que me amavas. Olhei para ti perplexo. Sorri e disse-te “amo-te”, por instinto, como quando nos batem no joelho e a perna se mexe sozinha, e enquanto o dono do cão recolhia num saco de plástico o cagalhão – uma novidade, na altura. Pouco depois estávamos naquele minúsculo apartamento cheio de bolor e tinta velha, a fazer amor pela primeira vez. “Amo-te”, disse-te eu, de novo, para me castigar. Nunca senti nada disso – como tu bem sabes – nem hoje, apesar de nunca te ter deixado, e apesar das poucas mulheres com quem estive. Sempre fui gordo demais e famoso de menos. Agora estou velho, flácido, ridículo, e já não tenho paciência. Desculpa-me escrever-te desta forma, mas a tua última carta irritou-me. Dizes que não estás feliz. Balelas. Que tens saudades daqueles tempos. Tretas. Mas exactamente do quê é que tens saudades? De mim? Daquele café nojento? Das vezes em que o fizemos? Do meu coiso pequeno? De nunca te vires? De dizer que te amo? Das paredes mal pintadas? Do cheiro a roupa húmida? Não sejas mentirosa. Não tens saudades de nada disso. Se tivesses saudades seria de não te pesarem os anos, de não os teres vivido, de não teres comido, fornicado, trabalhado, cantado, conduzido, parido estes anos todos. Mas nem sequer é disso que tens saudades. Eu sei do que é. Há uma razão pela qual nunca me perguntaste se eras feliz. Tinhas medo que eu te dissesse “não sei”. Talvez fosse isso o que te responderia. E os teus saltinhos anarquistas, o teu peso funerário de vão de escada, o teu esgar filosófico perante a inevitabilidade da morte ruiriam. Querias um retumbante “não”. Categórico, curto, eficaz. Não querias que eu te tirasse a virgindade e a seguir sugerisse que talvez não fosses tão infeliz como pensavas. Foi por isso que nunca me perguntaste se eras feliz. Mas olha, vê bem, é desse susto que sentes falta. É desse limbo que tens saudades. É dessa angústia. Foi por isso que nunca nos deixámos. Portanto, meu amor, não me lixes. Esses prédios sujos, esses homens, esses filhos ranhosos e incompetentes, essa tua gente condenada ao lixo e barricada em Mercedes, nada disso te faz infeliz. Porra. Finalmente ficas a saber. Admite. Tens dentro de ti uma centelha estupidamente feliz. Não és como eu. Desculpa, mas não és perfeitamente infeliz como eu. E bem sabes que sempre fui um lamechas, especialmente depois de deitar abaixo uma garrafa de Tequilla. Portanto, aqui vai: de facto, tu, tu merecias melhor. Merecias que o teu primeiro homem, o que sempre ficou, te considerasse profundamente infeliz. Desculpa-me. Mas não és. Nem por sombras. Nem por sombras, meu anjinho.

 

Com amor,

 

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