4 subornos à luz do dia
/CINCO FEMINISTAS NA COZINHA
para a Marta U Crnom
À décima quarta reunião, a Olga
esqueceu-se da chave do salão.
Como era difícil remarcar outra,
a Maria sugeriu o único espaço
mais alargado de sua casa: Uma
cozinha de luz branca com mesa
redonda, quatro latas Campbell,
de Warhol, na parede, e, atrás da
porta, um calendário com um
Coração de Jesus abençoando.
A teresa não achou piada, a Rita,
aluada como sempre, disse que
sim, sem pensar no sortilégio.
A Ana, calada, gostou muito do
espaço luminoso e, sobretudo,
silencioso. Andara a ler tantas
teses, sem parar, na faculdade,
e a comer sandes a semana toda,
que sentiu saudades de cozinhar.
Contudo, ao entrar na cozinha
disse: Ah! Que saudades do Tédio!
O “Tédio”, no fundo, não era mais
do que: “saudades de ter tempo
para cozinhar em condições! E ter
a tarde toda para ler o que,
realmente, gosto: Woolf”.
CARTA A UM AMIGO BRASILEIRO
para o Daniel Floquet
Por onde se olha, o chão é escuro,
parece sempre escuro, sem nenhuma
gota de luz ou pequena e cintilante
esperança. Mas, amigo meu, lembra
a folha isolada na árvore da triste
Avenida, aquela que resiste a toda a
força incessante do vento. Aquela
que diz sempre Não, Não, Não.
Aquela que suporta toda a memória
no seu frágil e pequeno corpo.
Quando vier o verão e a força já
não mais for possível, o seu corpo
sofrido, leve, macerado, será
a onda sonora do revibrante
renascer de um novo Mundo.
Caída a última folha sobre a terra
morta, a memória, permanecida no
seu corpo frágil, trará à vida o
fresco tapete verde da Avenida,
por onde passeará esta esperança.
Σαλλοω
“factus est Rex dolorum”
Vivaldi, RV 638.
para o João Coles
Cansada, a voz esperava que os sinos
cobrissem a sua mais profunda dor.
O vazio irremediável, daquele que tem
em si toda a doçura do Ser, revibrava
em onda sonora, a mais intensa, sobre
a planície impura dos olhos do Corvo.
No âmago, a pena negra caía além do
corpo. Esperando o tempo silencioso, a
pétala vermelha purificava a pesada dor.
SELENE
para a Tatiana Faia
A cegonha,
esvoaçando na mais imprevisível planície, dança
para, no esquecimento, romper até ao vácuo
de todo o voo.
Corre, foge além do rio,
da leve água que escorre, da
mera neblina branca que evita o
aparecimento do horizonte.
O lago tingido de leite
corre nas entranhas, veias,
crostas de feridas insaráveis,
abertas na mais abrupta incompreensão.
O cavalo relincha. Não há quem o
pare, dura pedra! O dedo do olho desliza
em cada prega da crina.
Quem te consegue sossegar?
Relinchando a dor
somente
navega na mais intensa noite
da perdida
pátria.