2018: “Um quarto em Atenas” e “Fuck the Polis”
/“Memória é ter sede
e todo o futuro é sempre possível”
Tatiana Faia
“Espaço
que guarda a história de si mesmo e
também a do outro”
João Miguel Fernandes Jorge
Os grandes poetas têm sempre a capacidade de ver além do seu tempo. Quando todos rumam à direita, eles rumam à esquerda ou, simplesmente, param. Param, não no sentido de ficarem imóveis ou desistirem, param porque são capazes de sentir o seu tempo, de vê-lo sem qualquer distúrbio ou filtro social imposto. Param e conseguem entender que só regressando, dando uns passos atrás, podem continuar e avançar em frente. São herdeiros, ou filhos diretos, da Capacidade Humana de regenerar-se, de ultrapassar dificuldades, vencer. Dirão e bem: “Mas a poesia não muda nada!”. Será? Tenho sérias dúvidas! Claro que um poema não pode resolver a dívida “soberana” de um povo, mas ela lança a semente nos corações dos homens. Uma aqui, outra ali… e, talvez, indiretamente, algo se modifica, mesmo que para isso demore anos e anos. Novalis diria: “Alguns grãos poderão ser estéreis – mas basta que uns quantos germinem”. É preciso muito tempo para se ser qualquer coisa interessante! Tempo, aquilo que ninguém diz ter e, talvez, seja preciso estar-se morto para se viver realmente, pois, estar morto como diz Sloterdjik, na fieira de Platão, é condição para o pensamento, criação. É preciso estar-se longe, estar-se fora da cidade, fora da pátria, para se criar aquilo que é mais inovador e imponentemente belo.
Tudo isso vem a propósito de dois livros, publicados neste ano de 2018, um no seu início “Um quarto em Atenas” (Janeiro) de Tatiana Faia e outro no seu fim “Fuck the Polis” (Novembro) de João Miguel Fernandes Jorge. Ambos parecem ir ao encontro do mesmo objetivo: revisitar, repensar, reescrever e, até, desacelerar. Esse desacelerar do Tempo é o encontrar-se, renovadamente, perante a rica tradição clássica, do objeto artístico mais convencional (pintura/escultura/arquitetura), sem esquecer um certo olhar político: a defesa dos “oprimidos”, da simplicidade da natureza e do sossego longe da azáfama da cidade.
O retorno, o eterno retorno, do ambiente da cultura greco-romana não é um maneirismo tosco, mas um indício de que a salvação ainda é possível, a salvação pessoal e coletiva. Divago, bem sei. Mas, não se trata, aqui, de fazer crítica literária. Deixo tal pretensão para outros académicos. Interessa-me apenas apontar algumas impressões de dois livros por mim lidos e amados, neste ano que, lentamente, termina.
Desde “A terceira Miséria” de Hélia Correia (2012), que não lia um livro de poesia portuguesa contemporânea em que a Grécia Antiga /Moderna fosse pano de fundo. Para quem leu, na adolescência, intensamente Sophia e Kavafis, e na idade adulta Homero, nas fabulosas edições Cotovia, não poderia ficar indiferente a esses dois livros, de dois fabulosos poetas. Diferentes entre si, a começar pela idade/geração, mas tão parecidos e que marcam a sua geração com uma força difícil de apontar em palavras. Dois poetas (e não digo “Poetisa” em relação à Tatiana) de primeira categoria que, queiramos ou não, são pilares, cada um à sua maneira, das respetivas gerações. Dirão: “Que exagero!”. Há exagero no Amor, na Amizade, mas Não na capacidade de devido Reconhecimento.
As diferenças são facilmente notórias, os poemas longos da Tatiana contrastam com os poemas, relativamente, curtos de João Miguel Fernandes Jorge. Mas o que me interessa são os pontos de contacto entre ambos, que poderemos sintetizar: a) o fascínio pela arte grega, b) a evocação de personagens literárias e mitológicas gregas e c) o caráter declaradamente político dos dois. O último aspeto é o que me fascina particularmente. O poema “O retorno: 2016” de Tatiana Faia, dedicado ao poeta “exilado” na Finlândia - João Bosco, é o mais duro retrato de uma geração apanhada nas teias de uma grave crise económica, uma geração que se vê obrigada a emigrar, a sujeitar-se a trabalhos precários e que vê os seus sonhos defraudados. Um poema que nos diz: “não acredito que o país do puro pássaro seja possível”. É talvez o poema mais doloroso de “Um quarto em Atenas”, onde se sobressai nas entrelinhas/linhas um olhar crítico ao presente, a um presente ceifado, amputado.
Do mesmo modo, ainda que talvez mais subtilmente, o poema de João Miguel Fernandes Jorge “De um homem, a vida” mostra-nos uma vítima das crises económicas: a visão de um pedinte em “súplica” e a entrega “sobre a palma da sua mão direita” de uma pequena moeda, uma “envergonhada moeda”. A defesa dos mais frágeis, o olhar para a realidade crua do mundo que os rodeia: eis o que liga esses dois poetas. [E aqui tenho de fazer um parênteses para evocar um outro livro “político” de 2018: “A Foz em Delta” de Manuel Gusmão, com um caráter ainda mais fortemente político, longe de João Miguel Fernandes Jorge ou Tatiana Faia, é certo: “Em Portugal, 51% dos jovens/ licenciados estão no desemprego. É/ uma violência que lhes é feita, assim/ como ao país que se vê por essa via/ impedido de utilizar o seu trabalho/ qualificado.” (“Baile Mandado”).]
O caráter político dos dois livros, de Um quarto em Atenas e Fuck the Polis, sobressai durante toda a sua leitura. O “Fuck the Polis”, de João Miguel Fernandes Jorge, já no seu título aponta para esse aspeto iminentemente político, esse graffiti escrito na rua dedicada a El Greco (“Rua Doménikos Theotokopoulos”), parece em “última análise” ser a resposta dos poetas expulsos da cidade ideal de Platão. Na epígrafe, retirada de Pausânias, é evocada Nemésis (“a mais implacável entre os deuses”), é assim apresentado, desse modo ao leitor, “a nota” de que o livro foi escrito sobre o ímpeto da indignação, a mesma indignação “política” que aqui e ali parece surgir em “O Bosque” (livro-diário escrito nos anos de 2012, ano do auge da crise económica em Portugal). Assim se compreende o aparecimento, no livro de João Miguel Fernandes Jorge, de “mortos vivos”, “mendigos”, “operários” ou, ainda, homens em desespero no metro.
Para além do caráter político do livro, há a grande entrega aos poemas sobre obras-primas da Arte Grega. Os corpos criados pelos “nossos escultores favoritos” da Tatiana Faia (“Café Drama”) estão todos em “Fuck the Polis”: Policleto (“Na estela, o Doryphoros” e “Diadoumenos de delos”); Crítios (“Agôn”); Fídias (“A descalçar uma sandália”); Praxíteles (“De um homem, a vida”) e ainda os escultores das métopas de Olímpia (“Leva-te o arco de Adriano”). Se em “Um Quarto de Atenas” encontramos evocados Caravaggio, Brueghel e Manet; em “Fuck the Polis” temos, também evocados, Malevitch (“Hieratic Cross”) e El Greco (Rua Doménikos Theotokopoulos”): nos dois a mesma pincelada da pintura. Se em Tatiana Faia há um “jardim fechado no meio do nada”, em João Miguel Fernandes Jorge há um “Jardim perdido”, um poema que fala de um eco de cavalgada, o mesmo “eco” tão presente em Fernandes Jorge. Há vários pontos de contacto entre as duas obras e, como é óbvio, diferenças consideráveis, mas isso exige releitura, sensibilidade e Tempo. O já evocado Tempo.
Nestes apontamentos de hoje, quero ainda referir que no livro “Fuck the Polis”, João Miguel Fernandes Jorge escreve poemas extraordinários que nos parecem muito próximos da “narratividade fluida” de Tatiana Faia, é o caso de “Com a beleza cerâmica de uma pyxis”, “Pensei que era Fedra” (ver “Aula de Natação para Fedra” de Tatiana Faia) e “Cândia”. Ao dizer tal afirmação, procuro chamar à atenção para a juvenilidade da poesia de João Miguel Fernandes Jorge neste último livro. Apesar da diferença de idades, experiências e geração, há um encontro entre os dois poetas, ambos conhecedores da Grécia física e literária; ambos parecem encontrar-se em forma, em expressividade e em temática. Sendo eu, leitor de um e de outro, não pude deixar de reconhecer diferenças e semelhanças; impressões que precisam ser mais trabalhadas com o tempo.
João Miguel Fernandes Jorge atinge com “Fuck the Polis” um grau de beleza e pureza próximo de “À beira do mar de junho”. Aqui, neste livro, estão alguns dos mais belos poemas, alguma vez criados, em língua portuguesa dedicados à escultura clássica grega, colocando definitivamente João Miguel no mesmo patamar de Sena e Sophia, só para citar os mais óbvios. Há poemas mais complexos, mas, igualmente, poemas de uma subtileza, leveza extraordinária. É o caso por exemplo de “Cadeira”, “Os gansos brancos” (que me fez pensar no “Cantus Arcticus” de Rautavaara) e “Os incorpóreos sentidos”.
É com “Cadeira” que vos deixo: “de espaldar azul/ assento de palha// perde-se / na parede branca / a sombra”, e somos levados à tranquilidade de uma qualquer ilha grega, longe das grandes cidades, uma, porventura, silenciosa ilha onde o Tempo para. Não sendo este texto crítica literária, podemos perguntar: O que diriam os poetas expulsos da cidade de Platão? Simples: Fuck the Polis! Frase esta, eventualmente, também repetida algures por Tatiana. “Que se lixe a cidade!” E dizer “cidade”/”Polis” será dizer: exposição pública, fama, progresso desenfreado, etc. Ou talvez queira, simplesmente, dizer: “Deixem-nos (aos poetas) em sossego perante a natureza e a arte.