Livros indirectos
/Por diferentes razões, há estantes cheias de livros silenciosos, ou melhor, de livros silenciados. Os que merecem o olvido são textos que se esgotaram, ou porque revelaram tudo, monótona e simploriamente, ou porque não conquistaram o sopro vital dos leitores (num retorno de generosidade).
Contra o fracasso, alguns defendem a sujeição do livro a uma qualquer utilidade, e o mais útil que se possa imaginar é dizer ao leitor aquilo que ele quer ouvir. Acredito, pelo contrário, que um livro deve ser excêntrico, abrir para o desconhecido, fabricar um pouco do porvir, sacudir o leitor, alargar o mundo. Resistir às interpretações lineares, armando-se de múltiplas centralidades, estar sempre um pouco à deriva, ser, como queria Jacques Derrida, indecidível. Ou ainda, conter linhas impuras e opacas que impeçam comentários claros e definitivos, dissolvendo a lógica, mais económica do que estética, do bestseller. Não pretendo elogiar a obscuridade pela obscuridade, entendam-me bem; é evidente que um livro tem de revelar algumas das suas intenções, ter força sugestiva e elucidativa, conduzir à emulação... Trata-se, antes, de denunciar a transparência a qualquer custo, a simplificação estéril, os sound bites que definem de uma vez por todas um qualquer sentido (era bem isto que a novilíngua pretendia). E por isso todas as obras devem ser indirectas, ter uma presença densa e polifónica.
Um livro sem uma certa indecidibilidade, um inteligente claro-obscuro, um livro directo transforma-se rapidamente em matéria inerte, e passará pelos escaparates como cão por vinha vindimada, como um meteoro pelo olhar de uma claque de futebol. Se deixar que se esgotem os seus significados, se não forçar uma e outra vez o jogo da reflexividade, onde o exterior (actualidade) se confronte com o interior (subjectividade), se sucumbir à nitidez e à utilidade terá uma esperança de vida, se chegar realmente a viver, tão curta quanto merece (a longevidade continua a ser o grande critério artístico). Deixem-me, para melhor me compreenderem (mas não totalmente), dar exemplos de alguns autores que me incitam a lê-los infinitamente, desses que não se deixam apanhar à primeira, nem à segunda, nem.. Platão, Dante, Shakespeare, Dostoiévski, Nietzsche, Kafka, Joyce, Celan. Autores que vêm até nós com rodeios, autores enigmáticos, enganadores, hilariantes, cheios de circunvoluções, mas que ao mesmo tempo nos permitem descobrir novas parcelas do mundo, ou de mundos, que aumentam a vida porque trazem sempre um derradeiro arroubo de lucidez enlouquecida.