Mazagão, ou a Queda do Império
/Esta Mazagão foi construída pela urgência da História, a mando de D. João III. A manutenção das praças do Norte de África – é muito grande verdade que estes lugares d'Afriga alevantarom fora dos reinos e dentro deles o estado de Portugal, nas palavras de Gonçalo Mendes Sacoto, capitão e poeta – ou o seu abandono – muy bom sumydoiro de gente de vossa terra e d'armas e de dinheiro, segundo o Infante D. Pedro, filho de D. João I – há muito que se discutia na corte. A perda de Agadir e as retiradas de Safim e Azamor precipitam o seu reforço. Entre 1541 e 42, nasce de parto rápido a fortaleza defronte à baía e em volta do velho castelo, sob os cuidados de João de Castilho e João Ribeiro. O traço era da responsabilidade de Benedetto da Ravenna.
Será vigia atenta da carreira da Índia, entreposto comercial assim como posto avançado na ilusória conquista de Marraquexe. Vinte anos depois, em 1562, terá a sua prova de fogo aquando de um cerco de três meses, que acabará por ser levantado após pesada mortandade do lado muçulmano.
Nascia assim a fama da Mazagão inexpugnável e a do heroísmo dos seus habitantes, realçando-se de entre estes a figura de Rodrigo de Souza. Mas esta vitória seria o seu canto de cisne. Trazia no ventre um prenúncio. Ficará isolada, cada vez mais sozinha, à medida que as restantes praças eram abandonadas ou perdidas: Arzila, Alcácer-Ceguer, Ceuta e Tânger. Por fim, Mazagão transforma-se numa ilha de pedra encravada entre o mar e a terra. Uma relíquia dispendiosa e sem proveito que já não assustava o Infiel, dela alheado após a vitória de Almançor na batalha de Alcácer-Quibir. Minúscula parcela de um império que minguava a Oriente e se expandia na imensidão brasileira, à qual sem ainda saber o seu destino iria para sempre ficar unido, Mazagão era um enclave de esquecimento e uma teimosia.
Mas para os seus habitantes a vida continuaria igual, apesar de se ter tornado tão diferente. O mundo ficara mais despovoado. Mais vazio e desabrido.
No Inverno, as brumas mantinham-se por mais tempo, galopavam as muralhas e estendiam-se espessas, tapando a cidade, fazendo crer que esta tinha desaparecido de vez da face da terra. Eram dias de horizontes cerceados. As pessoas perdiam-se naquela teia rasteira e húmida e as sentinelas tentavam penetrar na paisagem em volta, com olhos de admiração. Inutilmente. Eram dias de perplexidade e quieta inquietude. Os ventos cessavam, nada se mexia, e as raras vozes e os raros ruídos rotineiros calavam-se. O mundo havia-se tornado mudo. Tão estranhamente mudo que às vezes alguém gritava um nome, um cumprimento, somente para se fazer ouvir.
E no Verão, o Sol dançava frenético sobre si mesmo num céu branco, queimando a vida em Mazagão. Nesses dias implacáveis, todo o movimento era um esforço sobre-humano ou então um declarado acto de resistência. O horizonte tremia e figuras temerárias surgiam em cavalos brancos, até que as sentinelas vacilantes se apercebiam do engano. Nunca lá haviam estado. Durante o dia a vida suspendia-se, parecia ter-se recolhido para longe, pelo entardecer ganhava alento e por horas breves rejubilava num ânimo de condenado antes de a noite, extensa mancha difícil de transpor, a relembrar da sua solidão. E os anos, as décadas iam passando.
Durante demasiado tempo parecia que ninguém se aproximava da Mazagão esquecida, a não ser os pequenos grupos de cavaleiros moiros com as suas razias e investidas. Mas estes, com a sua presença regular, não contavam, pois de certa forma também pertenciam àquele lugar rude e claustrofóbico. Onde simplesmente respirar se tornara um gesto árduo. A própria cidade encolhera, mirrara como um tecido mal lavado. Muitos fronteiros esperavam a chegada das naus e galeões, tentando conseguir com intrigas e favores um lugar para longe, pois longe iam os tempos em que prestar serviço em África era uma estratégia de ascensão social e de obtenção de riqueza garantida. Mas agora aquelas vinham em menor número, sempre atrasadas e sem grandes ordens de embarque. Outros porfiavam na decisão de ali permanecer e defender com a vida, se necessário, a praça dos constantes cercos e emboscadas mouras.
Na Mazagão solitária só resistiam os hábitos há muito inaugurados e incessantemente repetidos quase até à exasperação, uma exasperação muda, contida entre dentes cerrados. Que se libertava em rixas e duelos. E em sexo desenfreado, denunciavam os padres, como se juntos, os corpos pudessem suportar melhor as provações impostas por Mazagão. Porém, no seu íntimo continuava a palpitar a secreta esperança, esse animal hibernado, de que um dia o tempo detido quebrar-se-ia e a vida, a verdadeira vida, voltaria. As longas décadas gastas em defesa da praça ganhariam sentido com uma grande campanha contra o Infiel e a conquista das cidades de Fez e de Marrocos. Era este coração subterrâneo que a mantinha viva, ou pelo menos em letargia, alimentando um quotidiano regulado por ordens militares. Os artilheiros inspeccionavam os canhões, os espingardeiros afinavam as armas, os turnos das sentinelas rendiam-se com zelo burocrático. Tudo isto acontecia todos os dias às mesmas horas. E às 6 da tarde, com a exactidão dos movimentos perpétuos, a torre de rebate ordenava o fecho das portas, ficando Mazagão ainda mais reclusa de si mesma.
Só as procissões que levavam N.ª Sr.ª da Assunção num andor coberto de flores, flutuando estranhamente diáfana acima de uma cidade embrutecida, e os jogos tradicionais organizados aquando da chegada de um novo governador, traziam a distracção necessária a esquecer o esquecimento a que tinham sido votados. E ainda quando, num esforço de imitação dos tempos antigos, os jovens fronteiros se lançavam em ataques de cavalaria ensandecidos, apostados em demonstrar a sua valentia ou então determinados em degolar o tempo, essa grande besta que lhes devorava a juventude.