Depois do livro, George Steiner
/Num artigo de 1972, George Steiner formula, retomando ideias pretéritas e abrindo para teses futuras, a finitude do livro, esse dispositivo essencial da cultura ocidental moderna. O título, “After the Book?”, é menos niilista do que poderíamos supor, e não justifica totalmente o texto que encabeça. Na verdade, para Steiner, depois do livro vem a barbárie, nenhuma outra tecnologia cultural conseguirá substituir a função civilizacional do livro, sem livros regressaremos às cavernas, mesmo possuindo a mais sofisticada tecnologia assistencial e hedonista de que há memória.
Na tradução de Miguel Serras Pereira, de quem cito, para a editora Gradiva, 2013, George Steiner. Sobre a Dificuldade e Outros Ensaios (On Difficulty and Other Essays, a 4$ na Amazon.com), encontramos esse e outros textos que vivem em torno da linguagem, tema predileto de Steiner, visto que, como escreve na página 262, “Habitamos um mundo de linguagem, e se este é origem de dilemas desconcertantes, mas marginais, é também a raiz da nossa existência consciente e do domínio que exercemos sobre a natureza.” Somos animais de linguagem e a versão mais sofisticada está inscrita nos livros, o esplendor da linguagem usou mais a escrita do que a fala. Ora, o problema é que “A amnésia organizada do ensino americano – e boa parte da Europa segue o seu exemplo – fez com que o alfabeto das alusões escriturárias, mitológicas e históricas da nossa literatura se tornasse hieroglífico.” (p. 263) Problema insolúvel para Steiner. E inclino-me para essa visão, talvez cassándrica, do mundo: lemos menos (apesar de se venderem mais livros e de se consumirem mais medicamentos, cujas bulas são textos extensos e quase poéticos) e lemos pior.
Steiner compreende que o livro só “durante um trecho relativamente breve da história, foi um fenómeno importante.” (p. 255) Talvez apenas a partir de Santo Agostinho se tenha começado a ler em silêncio, subjectivamente. E depois é preciso esperar pelo século XVI para que o livro comece a ser um elemento cultural determinante. Mas de seguida ele ganha um ascendente formidável em relação a todas as manifestações da cultura oral, tanto que se torna “comprovadamente o talismã contra a morte.” (p. 261) O ser humano passa, assim, a ter uma pele e uma alma linguísticas, e todas as renovações que ocorreram nos últimos séculos só resultaram porque a linguagem permitiu a sua eclosão, por exemplo (exemplo meu), sem O Manifesto do Partido Comunista não teria havido a revolução russa de 1917 (um materialista dialéctico discordará), ou sem a embriaguez poética (apesar de tudo controlada) de Charles Bukowski vender-se-ia menos cerveja no Bairro Alto de Lisboa, ou sem a poesia do corpo libidinoso de Mário Cesariny haveria mais adultos enfiados nos armários da culpa e da vergonha. Mas ainda, como disse acima, que se publiquem cada vez mais livros (haverá, claro, um retrocesso), faltam leitores sérios, como refere Steiner: “os requisitos principais da leitura concentrada no sentido de outrora [o “outrora” dele é por vez mítico] – o isolamento, o silêncio, o reconhecimento do contexto – tornam-se cada vez mais raros no próprio meio dos estudantes de nível universitário em que mais importante seria encontrá-los.” (p. 268)
É por isso que, para Steiner, “Depois do Livro” virá o “dilúvio”, uma profunda negatividade capaz, entre outras coisas, de eleger presidentes iletrados e dar autorização para ensinar a seres que nunca ultrapassaram o patamar da memorização incipiente e irrelevante. Se já chegamos lá? Vamos indo, tanto mais que “O que está assim em formação não é simplesmente uma «contra-cultura», mas uma «pós-cultura».” E, como sabemos, os “pós” são muito mais difíceis de identificar do que os “contra”.
Entretanto, boas leituras!