Carta-convite 2
/A Clara Crepaldi
Desta perdi-me a tentar encontrar a exposição que vim ver e antes tinha passado um longo tempo sentada no chão do imponente átrio de entrada atando os atacadores dos ténis, olhando com um pasmo bovino (que não se confunde com o epíteto de Homero para Hera) os turistas cirandando em redor da loja, do café, os grupos de adolescentes sentados nas escadas, que não sendo pagodeiros não ensaiam o seu batuque, sentam-se antes cansados no chão como eu, com os nós das gravatas do uniforme da escola mal desfeitos. Quando penso em cosmopolitismo, penso no átrio deste museu. Talvez uma parte do nosso trabalho seja colecionar momentos das nossas vidas em países cheios de contradição. Embora seja bem pretensioso isto, espero mesmo que sim, porque dentro do meu bolso tem um bilhete para ir ver a exposição do Rodin, aquela que explica porque é que ainda não consegui mostrar ao Tadeu os mármores do Partenon, e penso que devia trocar este bilhete por um bilhete de amigo permanente do museu, com opção de adquirir um passe gratuito por mais vinte libras, para te trazer aqui e vermos todas as exposições quando me vieres visitar. Há-de haver aqui de certeza algum quadro sobre a batalha de Waterloo, onde algum soldado há-de aparecer também de camisa aberta até umbigo, e nós concluiremos que em face de pintar algo assim, escrever uma tese é canja.
Pergunto-me se a esta hora o nevoeiro já se terá levantado sobre Salvador e imagino que as flores na minha macieira em Oxford tenham desabrochado um pouco mais. Clara, se tu vieres até ao fim do verão podes comer maçã do pé e podemos montar uma destilaria clandestina no barracão do jardim, ao lado das bicicletas para tentar fazer uma mistura que saiba um pouco a esse vinho da Grécia, retsina, que aqui eu nunca encontrei mas que nós bebemos não longe da biblioteca de Adriano em Atenas.
Clara, a coisa que se percebe logo, assim que se entra no amplo átrio do British Museum é a disciplina imponente, ampla, ordeira, com uma cascata de imponentes escadarias, que chega com um eco de um certo tom imperial, mas não sei porquê, a mim primeiro isto sempre me fez pensar numa descontrução da Acrópole, no facto de este átrio ser coberto, uma alusão à eterna chuva de Inglaterra, ao facto de que não dá para cantar ao sol entre as colunas, e não há neste átrio Cariátides, claro, mas a estátua equestre de algum dignitário romano que eu nunca senti curiosidade de verificar ao certo qual, pela cara suspeito que talvez Galba ou Balbo. Em Oxford, que não é longe de Londres, a fachada do Ashmolean é uma imitação menos intimidante das fachadas dos templos da Grécia, e tem até uma réplica da máscara do Agamémnon, que naquela tarde no Museu Nacional de Arqueologia em Atenas os turistas asiáticos não nos deixaram ver em paz.
Mas se tu me visitares antes do verão terminar em Londres, há numa destas salas do British Museum, para além de tudo o que o Lord Elgin saqueou na Acrópole (um hábito questionável, assiduamente praticado por países ditos de primeiro mundo), os quadros que John Craxton pintou em Creta e em Hidra e em Poros, de marinheiros gregos e paisagens com sol a pique e cabras, ainda que nada indique que Craxton tenha alguma vez subido os degraus de Thoriko para ter uma conversa sobre política, e não muito longe daqui, em Holborn, tem a Ship Tavern, onde não tem aquela cerveja boa do anão, que nós bebemos em Amsterdão, mas onde tu e eu podemos beber Camden Ale, antes de caminharmos de volta até Trafalgar Square, onde tem a estátua do Lord Nelson e eu tagarelarei sem parar sobre Emma Hamilton, amante de Nelson, enquanto a tua atenção errará na amplitude deste verão cinzento que, no entanto, não é como o de Amsterdão, e os leões de Trafalgar parecerão de repente um pouco menos autoritários, os ingleses não tinham imaginado, no regresso de Nelson de Nápoles, que uma mulher ao mesmo tempo tão bem-parecida e tão aparentemente apagada podia afinal ser uma desculpa para tanto tumulto na casa do mais lendário dos almirantes ingleses, e eu notarei que não dá para nadar na fonte, embora as águas também sejam muito azuis. Ou depois de entrarmos na National Gallery e termos discutido aquela mulher de pescoço desnudo pintada por Del Piombo, se o tempo não estiver mau, talvez um mergulho na fonte esteja em ordem. Clara, se não contigo, com quem?