Consolo na miséria
/Quatro meses e meio a limar bruxuleante prosa, cento e vinte maços de tabaco esventrados, três quilos de café conferindo tons acastanhados à dentadura, iracundas jornadas de bulha com a esposa, tudo em vão, suspirava o vencido Quirino. Ainda que soubesse das virtudes da paciência, não podia mais dar de caras com a repugnância ou, ainda pior, com o desinteresse de editores impreparados para literatura como a sua, por si próprio apontada como avant la lettre. Que país, declamava ao vento, que não premiava os melhores, que secava à fome merencório artista de dimensão planetária, que nem permitia que relevantíssimo artigo, dedicado ao tema da deglutição de nozes no tempo do rei D. Carlos, tivesse direito a publicação em revista de modesta circulação.
Jacinta, hirsuta e escravizada esposa do escriba, digeria com cada vez maior desgosto uma realidade confirmada pela natureza como facto científico: além de não contribuir com tostão para as despesas domésticas ou de não se envolver, por questões éticas, religiosas e sabia-se lá mais o quê, com tarefas profissionais relacionadas com dinheiro, a patética figura do marido não era abastecida de talento que lhe valesse aquele inane quotidiano de inactividade. Aquando de particularmente intensa explosão emocional de Quirino, que meteu lágrimas, berros, pratos partidos e patadas nos móveis, consequência directa da rejeição editorial do tal pedaço de arte que lhe custara quatro meses e picos a redigir, a senhora, imbuída de espírito heróico, decretou a seguinte sentença: a partir do dia de hoje, pagas o que comes, os banhos que tomas, o detergente gasto na lavagem dessa tua encardida roupa e, todos os meses, pouco antes do dia quatro, pousas cem notas na mesa de jantar, de maneira a que a renda seja paga sem meu prejuízo. Trespassado pelas mortíferas palavras da mulher, Quirino torceu o lábio, enrugou a testa, ajoelhou-se, como que prenunciando enfarte, embora de enfarte nem sinal, rebolou copiosamente na carpete, na esperança de que Nosso Senhor ou mesmo Jacinta se apiedassem de seus padecimentos, e clamou que a arte lhe consumia os nervos, que o problema no joelho lhe tolhia o andar, que um início de demência lhe subtraía expectativas, e que a mera hipótese de se imiscuir no mercado de trabalho, assim do nada, com trinta e oito anos no corpo, lhe metia medo, tanto medo que preferia permanecer como estava, apático, na dependência de uma limpadeira, preso ao ordenado mínimo de terceiros. Outra vez de coração amolecido, Jacinta calou a boca, afagou o cabelo do marido e, num meigo tom de voz, trouxe paz à casa: Meu chocolate branco, que culpa tens tu de ter nascido estúpido como uma porta?
Possivelmente por causa dos eclipses solares, pela astrologia considerados causadores dos mais fantásticos eventos, as semanas, caracterizadas por mudanças bruscas, tiveram pedido de divórcio, cabeçadas, narizes partidos, cadernos ardidos, paredes borradas de sangue e visitas aos serviços de urgência do hospital. Afastado do amor da sua vida, daquele matagal de pêlos que à noite o consolava, o homem buscou sossego nos braços de outra fêmea, Cidália, cega, surda, muda e morta, tão morta que todos, menos o entontecido Quirino, sempre em busca da frase perfeita, a tinham por fantasma.