Natureza (quase) morta
/A senhora inglesa posa talvez
para um pintor imaginário que não sabemos;
ele há-de fixar-lhe o corpo reclinado
o gesto de quem tenta reter a última luz
da tarde.
No balcão raso um limoeiro
botou raiz e frutos
e ela é a personagem do livro que lê demoradamente,
sem cuidar de saber de uma outra senhora
que em Bruxelas negoceia, aos milhões,
a manutenção futura deste sol a baixo custo.
Às vezes, muito antes da leitura,
a senhora inglesa dedica ao atento siamês
um falsete que só ele entende
e julga ser ainda escutada
por uns netos longínquos e de olhos claros
que gritam e fazem caretas como os netos de toda a gente
mas secretamente lhe outorgaram já
o pequeno brexit familiar.
(Cabanas de Tavira
2018)
Carlos Carreiro - “Paisagem com natureza morta”, 1990.