AÇORES

“Sovente il sole

risplende in cielo”

  - Vivaldi (RV 117)

 

                                                                                    a Urbano Bettencourt

  

                        I

NOUGAT E GORREANA

 

Entre palavras o fio é retomado.

E doce é a entrega do encontro quente

essas mãos de apertada amizade.

 

Deitado em palhas

observa

o invejoso

o arranjo perfeito.

 

                        II

UMA VIZINHA COM ESTILO

 

Gata!

Uma espécie de leopardo das

neves

revestida de salgado marasmo

e lento tempo

desliza

 

não tem pressa.

O prazer traz entre as patas

e mia docilmente.

 

                              III

BANHISTAS DE OUTUBRO

 

A pele arrepiada do Outubro

submerge no líquido circular da ilha.

 

Nós aqui na esplanada frente ao mar

reencontramos o frio interior da espinha

como peixes que fomos.

 

Longe ela submerge para

dentro da nossa memória enquanto

à porta a nossa vontade espera.

  

                         IV

UMA ILHA CHEIA DE VIVENDAS

 

Vivenda Almeida Vivenda Botelho

Vivenda Soares Vivenda Maia

Vivenda Sousa Vivenda Melo

 

No presépio a rivalidade entre vizinhos

sempre foi muito intensa

Este é o meu palácio de dois metros quadrados

Este sou eu longe de ti, maldito!

 

No presépio as placas na parede de cimento

são sempre sinônimas de arame farpado

distância e chapadões.

  

                         V

ÓCULO DE BASALTO NEGRO

 

A Marquesa

senhora da alta elite

vai ao Teatro.

Hoje haverá Schubert e

notícias de Lisboa que

Dona Glória me trará.

 

Vestido o capote há que

espreitar através do óculo

o silêncio da calçada.

Não vá ela esbarrar com

Dom José de olhos gordos e

mãos ásperas.

 

“Se ao menos fosse pianista!”

  

                     VI

     O DIABO DA FOME

Vermelho sobre branco.

Um papel mais velho do que eu.

Queria ter desenhado este sangue!

 

O diabo semeador de misérias

corre pela ilha procurando vítimas

entre as 11 e a meia-noite.

 

Dona Josefa nunca sai de casa

a tais horas não vá a corrente

do diabo agarrar-lhe a perna.

Mas às vezes arrisca e segue

para casa do padre Rui.

“Não há peito peludo má linde!”

  

                   VII

À CHUVA E AO VENTO

 

Meu rico Santo Cristo

mudo-te as flores todos os dias

a lamparina está sempre acesa

meu pão meu senhor meu bom amor

faça de mim uma mulher justa.

 

Ao relento numa parede do quintal

o moço no quadro em lágrimas

reclama tão triste destino

desprezado à chuva a ao vento.

  

                         VIII

UM LAGO DE METROSÍDEROS

 

Num jardim já sem grades

D. Carlos e D. Amélia sentados

numa esplanada não

apreciam as mudanças

“Corre tão depressa esse tempo

hoje, já reparaste?”

 

Indiferentes à mudança os metrosíderos

reúnem-se no vazio do céu

deixam entre si

no meio do jardim

um lago de céu azul.

 

Combinaram entre si manter a memória

do lago circular que os homens

insistiram em destruir.

 

                   IX

O ELEFANTE CINZENTO

 

Muitos nichos quadrangulares retangulares

pés direitos muito altos

basalto negro e cimento branco

uma alta chaminé sobre o dorso.

 

O elefante caminha lentamente

tem mil pés de aranha

tão finos que ninguém os vê.

 

                                            X

MADRE MARGARIDA DO APOCALIPSE

 

Lembro-me do ano de 1988.

Havia crianças entre a entrada e o jardim

e eu morta conhecia ao fim de séculos

alguma alegria.

 

Na roda da dança havia sempre um

miúdo que olhava para mim

sentia-me viva.

Era o único que conseguia ver-me!

 

Hoje tento ir à janela mas não vejo ninguém.

Tenho por passatempo avistar o universo

na humidade das paredes mas confesso

que trocava esse universo pelo olhar

de uma criança um olhar vivo

um que me fizesse lembrar

padre chico       meu perdido amor.

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Vítor Teves - Ribeira Grande