Para 2020

Paul Klee

Paul Klee

Para 2020, “torna-te o que és”!

Esta máxima, atribuída a Píndaro, está perfeitamente enquadrada na sabedoria apolínea, irmã, por exemplo, do célebre “conhece-te a ti mesmo” délfico (que o Sócrates de Platão tão bem ilustrou). Ela será retomada por Nietzsche, destacada no subtítulo do seu último livro, Ecce Homo: Wie man wird, was man ist (como vir a ser o que se é)

Para este pensador (nunca tremo ao designá-lo assim), todas as antropotécnicas são válidas para virmos a ser o que somos, não no sentido heideggeriano de uma autenticidade metafísica que substitua, e supere, as formas de ascese religiosa, mas como encontro do impessoal que até certo ponto governa a nossa pessoalidade (considerada, com muita imprecisão, o “eu”). Mas não será Nietzsche o inventor do eremitismo heróico moderno, que em vez de esvaziar a subjectividade a amplifica até ao estouro? (Übermensch = super-homem) Não, essa é apenas uma velha e desajustada forma de o ler. Se lhe prestarmos a devida atenção, partindo, por exemplo, do que escreve em Assim Falou (ou Falava) Zaratustra, o sujeito é a soma de uma ficção linguística com um dispositivo religioso para manter viva a ampla economia da culpa e do ressentimento. E mesmo quando confrontado com aquilo que pouco tempo depois dele dirá Freud (afirmava não o ter lido seriamente porque temia descobrir que o plagiava), resiste coerentemente à tentação de tudo, ou quase tudo, convergir para o eu (em Freud, deve-se escavar o inconsciente e enchê-lo de uma consciência cada vez mais plena, pessoalizar o impessoal). Em Nietzsche, o devir individual (um tornar-se que nunca se conclui, dinâmica assimptota) conduz, por linhas mais travessas do que direitas, ao “si” (Selbst), em Freud, com a ajuda do psicanalista nos casos mais difíceis, ao ego.

Bom, mas então como e para quê tornarmo-nos o que somos?

Como: buscando a base da estrutura orgânica, as forças construtivas e destrutivas (nisto, Nietzsche e Freud coincidem) que alimentam a nossa passagem por aqui (estamos, quer queiramos, quer não, sempre num devir inexorável). Não ser de nenhum lado (o nacionalismo é tão arcaico que custa acreditar na sua sobrevivência), não ter nenhum nome. Os caprichos individuais substituídos pela biologia do sistema respiratório. Venerar também o inorgânico que somos, até porque essa será a nossa condição dominante futura.

Para quê: para amarmos outras coisas para lá de nós próprios, amá-las verdadeiramente, não como fazemos agora em modo boomerang. O verdadeiro amor só pode ser incondicional, e por isso acontece apenas em relação ao distante, ao mais distante possível. Não cabe nele, com certeza, o amor paixão (invenção recente) ou o familiar. Não cabe também, embora se aumente a distância, a amizade. Nem qualquer neo-humanismo. Começa a ocorrer no amor por outras espécies e outras formas de vida. Aproxima-se quando chegamos, por exemplo, ao reino mineral (em pura contemplação). Intensifica-se se amarmos uma estrela, não porque nos ilumina, mas porque a amamos em si mesma sem querer nada em troca. Finalmente, fica pleno quando amamos o nada. Aí tornamo-nos aquilo que somos, já que as forças afirmativas que nos compõem se libertam de qualquer resquício narcisista e aceitam, sem conflitos, patentes ou latentes, que também nós somos nada, a máxima potência da impessoalidade.

Claro, com isto vou contra a epistemologia, a ética, a política, a economia... Enfrento todo o magnífico senso comum que nos governa, sobretudo nos fins de ano. Mas enfim, ninguém se dará ao trabalho de me lançar bombas incendiárias.

Para quem vir aqui uma qualquer forma de niilismo, parabéns, acertou. Mas cuidado, é o niilismo completo de Nietzsche. Que na altura combatia o grosseiro fetichismo da importância última do eu, do eu acima de tudo, a derradeira hipertrofia do eu. Alimentado e exacerbado na viagem que nos trouxe dos primórdios da consciência até aos glutões do Planeta. Como pensava Nietzsche, à morte de Deus deveria seguir-se a do homem, desde homem, para que o sobre-homem possa surgir, até porque só ele conseguirá, verdadeiramente, amar o distante. Pelo contrário, sem superação do humano, as actuais sociedades imunitárias tenderão a ser governadas pelo absurdo, cheias de querelas de egos e de sem-sentido, festa da autodestruição.