"Era uma vez um papão"*
/ “corre o gato mais o cão
atrás do pobre ratão”*
Antero de Quental
MARIANA
Era uma vez uma formiga, Mariana.
Cuspia sangue ao meio-dia
Perdia dizia perdia dizia
Como? (e tossia)
Perdia a ervilha
dizia na vila
Perdia a ervilha
dizia na vila
pobre formiga!
Corria a apanhar o
autocarro
sempre perdia
Nunca compreendia!
Se ao menos a dor ao som
chegasse a tamanha teimosia
espiga de milho teria.
Fecha a porta, Mariana!
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CAROCHINHA
“Não quero mover
o eixo da Terra”
Raúl Milhafre
“Esses jovens poetas são uma pobre rabiça
um cão sem pele ou osso
só rabiça!
Da suculenta palavra nem sangue
nem esforço
tudo oco.
Limitam-se a contar historinhas
um gato um rato
uma doninha, eu sei lá!
Não quero saber do Ratão
nem da Carochinha
quero sim pó e azia!”
Dizia o velho bardo sentado no banco do jardim
azedo de inveja pela juventude
que corria frente aos seus olhos.
Não havia sol que levasse
aquela pesada nuvem!
Ele que vivera toda a vida na solidão
fechada
de um velho dicionário
e não sabia rir.
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ANÍMICAS, PIEGAS E IRREVOGÁVEL
A história dos três porquinhos sempre me
cheirou a uma grande aldrabice. O Porco da
minha avó nunca foi cor-de-rosa, nem tinha
colete algum de cor primária ou, até, boné.
O sopro do lobo, nesta pequena história,
sempre foi demasiado fraco para afugentar
os três indefesos porcos. E o Lobo, sempre
misturado com os rufias e com a morte, teria
estômago suficiente para comer três porcos?
O inocente, neste conto, sempre foi o lobo
correndo atrás da carne e recebendo, na
pobre pança, o ar quente da sua frustração.
Juntar três palavras e três porcos será sempre
um mera comparação imbecil porque os porcos
nada têm de porcos ou de mentirosos. Não
apreciam o alto prazer do estudo ou da distinção:
ter ou não ter rabiça é ter ou não ter cuecas. Mas,
porcos e políticos sempre fizeram um casal de
dimensões perfeitas. E, bem sabemos, a perfeição
quando perfeita torna-se tão abominável com um
cancro. Um cancro que devastou, tal foice da morte,
longos campos de pequenas cabeças pensantes.
* Antero de Quental (Poesia III - Poemas dispersos, alterados ou destruídos, 2018).
A cigarra e a Formiga