QUATRO POEMAS DE ROBERTO BOLAÑO TRADUZIDOS POR FREDERICO KLUMB (1/2)
/É noite e estou na zona alta
de Barcelona e já bebi
mais de três cafés com leite
em companhia de gente que não
conheço e sob uma lua que às vezes
me parece tão miserável às vezes
tão solitária e talvez não seja
nem uma coisa nem outra e eu
não tenha bebido café e sim conhaque e conhaque
e conhaque em um restaurante de vidro
na zona alta e as pessoas que
acreditava acompanhar na verdade
não existem ou são rostos entrevistos
na mesa vizinha à minha
onde estou bêbado e só
gastando meu dinheiro em um dos limites
da universidade desconhecida.
*
Lisa
Quando Lisa me disse que havia feito amor
com outro, na antiga cabine telefônica daquele
armazém de Tepeyac, pensei que o mundo
tinha acabado para mim. Um tipo alto e magro
de cabelos longos e um pau enorme que não esperou
mais de um encontro para penetrá-la até o fundo.
Não é nada sério, ela disse, mas é
a melhor maneira de te tirar da minha vida.
Parménides García Saldaña tinha cabelos compridos
e poderia ter sido amante de Lisa, mas alguns
anos depois soube que havia morrido em uma clínica psiquiátrica
ou que tinha se suicidado. Lisa já não queria
ir para cama com perdedores. Às vezes sonho
com ela e a vejo feliz e indiferente em um México
desenhado por Lovecraft. Escutamos música
(Canned Heat, uma das bandas preferidas
de Parménides García Saldaña) e então fazemos
amor três vezes. A primeira foi dentro de mim,
a segunda na minha boca e a terceira, apenas um fio
de água, uma fina linha de pesca entre os meus peitos.
E tudo isso em duas horas, disse Lisa. As duas piores horas
da minha vida, eu disse do outro lado.
*
Te legarei um abismo, ela disse,
mas de maneira tão sutil que só o perceberá
depois muitos anos
quando estiver longe do México e de mim.
Quando mais o necessitar o descobrirá,
e esse não será o final feliz,
mas sim um instante de vazio e de felicidade.
E talvez então te lembres de mim,
ainda que não muito.
*
Lupe*
Trabalhava na Guerrero, a algumas ruas da casa de Júlian,
tinha 17 anos e havia perdido um filho.
A lembrança a fazia chorar, naquele quarto do Hotel Trébol,
espaçoso e escuro, com banheiro e bidê, o lugar ideal
para se viver por alguns anos. O lugar ideal para escrever
um livro de memórias apócrifas ou um arranjo
de poemas de terror. Lupe era magra e tinha pernas compridas
e pintadas como as de um leopardo.
Na primeira vez sequer tive uma ereção:
tampouco esperava ter uma ereção. Lupe falou de sua vida
e do que era a felicidade para ela.
Depois de uma semana voltamos a nos ver. A encontrei
em uma esquina ao lado de outras putas adolescentes,
apoiada no para-lama de um velho Cadillac.
Acho que estávamos felizes de nos encontrarmos de novo.
Então Lupe começou a me contar coisas da sua vida, às vezes chorando,
às vezes olhando e contraindo, nua na cama,
o céu raso que se abria nas palmas das mãos.
Seu filho nasceu doente e Lupe prometeu à virgem
que deixaria a profissão caso ele se curasse.
Manteve a promessa por um mês ou dois e logo teve que voltar.
Pouco depois seu filho morreu e Lupe dizia que a culpa era sua
por não cumprir a palavra com a virgem.
A virgem levou o anjinho por uma promessa quebrada.
Eu não sabia o que dizer. Eu gostava de crianças, claro,
mas me faltavam muitos anos para saber
o que era ter um filho.
Então fiquei quieto e pensei em como era estranho
o silêncio daquele hotel.
Ou tinha as paredes muito grossas ou éramos os únicos hóspedes
ou os demais não abriam a boca nem para gemer.
Era tão fácil manejar o corpo de Lupe e sentir-se homem
e sentir-se desgraçado. Era fácil acomodá-la
a meu ritmo e era fácil escutá-la falar
dos últimos filmes de terror que tinha visto
no cine Bucareli.
Suas pernas de leopardo atavam-se à minha cintura
e ela afundava a cabeça no meu peito buscando meus mamilos
ou as batidas do meu coração.
É isso que eu quero chupar, me disse uma noite.
Quê, Lupe? O coração.
*Nota do tradutor: No poema “Lupe”, tomei a liberdade de verter os versos: “as veces cogiendo, casi siempre desnudos en la cama,/mirando el cielo raso tomados de la mano.”, para uma nova imagem, distinta da original no que se refere a literaridade. A escolha se deu, mais do que qualquer outra coisa, pelo desejo e a vontade de tentar alcançar, também, um pouco dessa beleza triste e desgraçada, legada por Bolaño a todos nós, através de sua literatura. Esta nota, por sua vez, não visa a justificar os possíveis erros e tropeços cometidos na tradução de alguns versos, feito que o tradutor assume aqui a carapuça, marinheiro de primeira viagem que é neste ofício. Mas, de alguma forma, penso que, por terem sido guiadas pelo desejo em primeiro lugar, uma madrugada veloz sem conseguir desvencilhar-me do livro, essas traduções não poderiam ser muito diferentes de como aí se apresentam. Talvez sejam justamente uma tentativa dessa coragem e valentia que Bolaño nos ensinou. Não sei se me perdoaria, onde quer que esteja agora. Mas sei que olha por nós, a cada vez que abrimos suas páginas.
Frederico Klumb é um escritor, poeta e cineasta brasileiro, nascido no Rio de Janeiro, em 1990. Cursou Cinema na PUC-RJ e publicou poemas e contos em revistas especializadas, nacionais e estrangeiras, a exemplo de Modo de Usar & Co, Continente, Escamandro, Garupa, Dusie e Incomunidade.
Em 2016, publicou o volume Almanaque Rebolado (Azougue / Cozinha experimental / Edições Garupa), um guia artístico-pedagógico para criação poética, escrito a vinte mãos e fruto de residência no Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica (CMAHO).
Em 2017 a plaquete Arena (coleção megamini / 7letras), além do curta-metragem Agharta, exibido em festivais nacionais e internacionais de cinema, a exemplo do Festival Internacional de Curta-metragens de Hamburgo.
Participou de antologias como Golpe: manifesto (Nosotros editorial) e da exposição Rejuvenesça: Poesia Expandida Hoje.
Em 2018 publicou máquinas mancas da manhã (pela Edições Garupa), além de diversos vídeo-poemas, que podem ser vistos em sua página pessoal no vimeo.
Em 2019 publicou Bichos contra a vontade, também pela carioca 7letras.