Cumprir Eduardo Lourenço
/I
Sucederam-se as orações fúnebres para atenuar a tristeza que a notícia da morte de Eduardo Lourenço nos trouxe. Ao mesmo tempo, teceram-se os maiores elogios à sua postura e ao seu modo de pensar, provocando uma certa exaltação. Destacou-se que nunca deixou de pensar bem, de ser afável e, à sua maneira, modesto. Que ensaiou permanentemente desvelar as camadas de sentido para lá fanfarronice epidérmica, do messianismo arcaico, muitas vezes invertido (“nunca chegaremos a lado nenhum”) ou do esquecimento que enfia os malogros num saco escuro com medo de instabilizar as nossas frágeis e coletivas maneiras de mitificarmos, mitos superiores e inferiores, nobres e vis, gerais e singulares (da ideia do “quinto império” até ao individualíssimo “pelos menos sou verdadeiro”, o que, veja-se, conduz ao paradigma bíblico pré-ficcional). “Determinações de quase autodefesa” perante o abismo do “zero à esquerda”. Mas talvez a “figura capital da raça humana seja Narciso”.
Muito se disse sobre o seu lugar de psicanalista nacional (Labirinto da Saudade), nós que somos tão avessos a apalpar entranhas; de intérprete supremo da literatura nacional, iluminando, entre outros, Fernando Pessoa (Pessoa Revisitado) com as linhas de sentido mais inteligentes que por enquanto se podem imaginar; de corajoso e lúcido heterodoxo (Heterodoxia I). Muito se disse, mas falta dizer muito mais, mesmo não se sabendo bem o quê (o tempo reescreve as obras maiores).
Mas tenho a firme crença de que falta posicioná-lo como a pedra angular a partir da qual, num processo de emulação crítica, devemos pensar. Reconheço o radicalismo da ideia, mas, reparem, se outros o fizeram, com grande proveito coletivo e individual, a partir de Descartes, Kant, Dostoievski, Ortega y Gasset, David Hume, Shakespeare, Dante, Platão, Aristóteles…, por que razão continuamos a saltar de ponto de partida em ponto de partida, achando quase sempre que seremos sobretudo nós a traçar a linha de chegada? Tudo isto sem demasiado talento ou vigor.
Eduardo Lourenço pode dar-nos a solidez de uma visão do mundo na e a partir da qual podemos pensar, e é disso que precisamos para rasurar definitivamente o “A pensar morreu um burro”. Não num qualquer projeto de dogmatização (que assombraria sem remédio o seu legado), mas para o projeto crítico que nunca tivemos e que nos levaria finalmente até ao esplendor das origens gregas e romanas, no fundo até à origem do projeto de uma cultura europeia, a sermos “bons europeus”.
II
Conheço muito bem a vulgaridade da autorreferencialidade. Por isso, na história que vou contar dou-me na minha universalidade, naquilo que está para lá de mim, da minha facticidade e contingência. Era uma vez um pós-adolescente cheio de preconceitos, sendo o maior de todos contra a consistência, por vezes inexpugnabilidade, da opacidade: embriagado por meia dúzia de raciocínios lógicos e por uma escolarização baseada no empinanço, assimilação e regurgitação das “verdades” dos manuais, achava, o eu universal achava que nada podia resistir aos ataques da razão. Era hegeliano sem o saber.
Caiu-me então nas mãos O Labirinto da Saudade, quando os antagonismos da Revolução já tinham serenado e tudo apontava para o mealheiro da Europa, da CEE. E, por uma razão suficientemente obscura para me permitir estar ao lado dos intelectuais que leram Nietzsche na adolescência sem perceberem patavina, pus-me, finalmente, a pensar. Não, bem entendido, com o jogo de linguagem de hoje (continuando, porém, no incipiente), a pensar que afinal tudo podia ser outra coisa. Ter-me-á vindo isso da incredulidade superior de Eduardo Lourenço, com a qual apanha os reais ziguezagues do povo, especializado em dar sentido ao sim e ao seu contrário? Do vínculo que mantinha com a complexidade do real, apesar das célebres máximas com que parece capturá-lo? Da ironia que sentimos correr paralela à descrição mais séria? Da instabilidade que provoca nas grelhas interpretativas e nas próprias categorias que utiliza?
Mantenho as dúvidas, gosto, aliás, delas. Conferem uma certa segurança ao meu campo anti-dogmático. E mantenho o deslumbre sem condições sempre que releio O Labirinto da Saudade, livro para a vida. Quem poderia ter dito 2 ou 3 anos depois do 25 de Abril: «o povo português passou da boa consciência de um sistema semitotalitário, ou mesmo totalitário, para a boa consciência revolucionária, sem mesmo se interrogar sobre tão complexa e súbita conversão das Forças Armadas fiéis ao antigo regime em força democrática e vanguardista.»
Espero que, sem cairmos numa paixão transbordante e mecânica, peguemos nas suas Obras Completas (em fase de edição pela Fundação Calouste Gulbenkian) e façamos delas um mapa conceptual para navegarmos de forma mais lúcida e ousada. Tenhamos, finalmente, o nosso Livro.