Três textos e três desenhos de Thiago Barbalho

Pra elas continuarem

Por muitas épocas que ando com minha rede de caçar aparições. Um dia um mendigo falou: leva suas caças pra carimbar com atestado de autenticidade. Aí eu levei, porque o mendigo falou que marca de carimbo era coisa boa. Mas o moço do carimbo fez careta e contestou minhas aparições.

Passou.

Continuei praticando a mesma realização sem pensar muito, mas com um desgosto crescente de lidar com gente, de não concordar com razões de me contestarem, de não conseguir me equilibrar no absurdo das ordens. O mundo dos homens me sugava com seus mistérios ruins.

Por onde passei pra descansar fiz amigos, e dei de presente a eles várias aparições. Aí eles também disseram que já era hora de tentar ganhar carimbo de mundo de novo, que ia ser bom pra mim de algum jeito que eu ainda achava torto.

Estranho que a gente espere permissão pra se dar.

Mas como sou manco da lógica direita, aceitei e tentei.

De novo: não.

Ampliei uma coleção triste de nãos e fiquei muito quieto e etílico. Tiago, Rogéria, Vini e Luis foram pessoas que me acudiram e têm me ajudado a caminhar até o terreno dos ninhos. Estou reaprendendo a habitar pessoas, plantas e bichos. Agora quando meu olho brinca as aparições são mais tranquilas.

Se eu ainda gostasse de caçar era capaz de ter empalhado cabeças douradas, mas quem precisa de troféu?

Na aparição das coisas existe um sorriso sem nome que quando eu pego a minha rede ele diminui. É assim: que nem um vaga-lume doador de lágrima. Por isso escolhi ficar só olhando mesmo. Em vez de prender encantos eu fico calado, e dou meu olho às coisas pra elas continuarem.

sem título XI [série "norte do sul"], 2019. 15cm x 21cm. lápis de cor, caneta esferográfica, lápis grafite e marcador permanente sobre papel.

sem título XI [série "norte do sul"], 2019. 15cm x 21cm. lápis de cor, caneta esferográfica, lápis grafite e marcador permanente sobre papel.

Lanterna 

Uma vez eu me perdi numa floresta. Não estava sozinho. Um homem me acompanhava. Eu ainda não sabia que ele era louco. Quando digo louco não digo livre, digo assombrado por seus próprios demônios: visitado pela sombra do próprio perigo. Ele já tinha falado sozinho várias vezes perto de mim e eu notei que ele só falava de tragédias, assassinatos, pessoas que se matam saltando de montanhas e cachoeiras, gente carregada pela água da chuva, assassinos, acidentes. Esse homem sem disfarce tinha o poder de me confrontar com tudo o que não se controla, por mais precavidos que sejamos – e acho que foi por isso que comecei a ter medo. Até ali eu não desconfiava. Eu sei que ele tinha um coração puro. É o tipo de coisa que você percebe. Mas isso não exclui ninguém do perigo. Então eu o ajudei e paguei pra ele me guiar pela floresta. E ele topou. A gente passou dois dias caminhando. Ele me contou que as pedras nos fazem susto, e eu olhava as pedras e via formas de rosto. Eu tinha medo de ficar com medo do que ele me contava, mas não tinha nenhum medo de ele ser violento ou se voltar contra mim. Eu tinha medo de me dar conta de que éramos iguais. O mal não precisa ser intencional, consciente. Ele é mais perverso quando dissolvido? Mas eu não pensava nessas coisas, e o silêncio habitado pelo vento nas árvores era bom. Até que a gente se perdeu. A trilha sumiu. Por uma hora ficamos desesperados à procura do caminho. Seguimos uma nascente, mas nada de reencontro. A tarde ia se despedindo e a noite nos queria sobre sua língua. A minha boca ficou seca e o meu coração não cabia. Quando o perigo é real não temos tempo pra imaginar. O louco que me guiava estava mais apavorado do que eu. Ele se sabia responsável por dois. Até que resolvi tomar a frente do seu pânico e propus voltar muitos passos. Quem reencontrou o rumo de continuarmos vivos fui eu. Descarregamos alívio nos nossos corpos. Alcançamos o abrigo e adormecemos seguros de nós mesmos enquanto a noite passava por dentro dos nossos estômagos. No dia seguinte me dei conta de que preferia viver. Disso eu não sabia tão bem. Desde então passei a caminhar com a minha própria lanterna.

sem título XIV [série "norte do sul"], 2019. 15cm x 21cm. lápis de cor, caneta esferográfica, lápis grafite e marcador permanente sobre papel.

sem título XIV [série "norte do sul"], 2019. 15cm x 21cm. lápis de cor, caneta esferográfica, lápis grafite e marcador permanente sobre papel.

Igual ao seu

Enquanto seu nome é de chumbo, o meu é de apóstolo. O seu nome de trás pra frente é o nome do meu irmão que não nasceu. O meu nome, quando pronunciado, espalha fé nas varandas. O seu, terror sobre os prédios. O meu nome de cabeça pra baixo é um dos nomes de deus. O seu nome é embaçado pelo pó que você disse nunca mais cheirar. O seu corpo tremendo de tristeza e você sem admitir que isso se chama vício, e não liberdade. São coisas tão próximas. Azar. A minha arrogância quis trucidar em você o anticorpo da dor só pra me expandir. E aí, antes que eu me desse conta, deixei o caminho aberto e você se ampliou em mim. A ambição é uma lâmina sem disfarce. Eu queria te convencer a se curar da maldade. Mas a maldade também é arrogante. Prefere não se saber. Você me pedia ajuda pra escapar da jaula que fabricou ao redor de si, e eu disse sim porque sim é a palavra que eu mais digo, porque sim é sinônimo de dois, mas você não queria liberdade, você só queria se esquecer por um momento e depois voltar à prisão. Que retrocesso. Tempo perdido, dor ganha. O seu uivo por socorro era o que eu queria ouvir e foi o que você deitou no meu colo. Mas, como todas as coisas que nascem em você, esse apelo era vaidade, e eu dei de cara com a sua distância. O vaidoso é o mais solitário dos homens. Eu queria te penetrar com meu raio de sim até que você entrasse em êxtase por aceitação. Por ter sido um homem que ambicionou, eu rachei. A generosidade que em mim é ordem me atravessa e me faz sofrer. Minha lucidez, ilusão, aponta pra iluminação. O meu nome vem de deus. Tudo o que chega até mim quer melhorar. A sua maldade me purificou. O meu nome é fera sem limite, brisa, pássaro, stultifero vegetal. Agora eu só uso roupas sem estampa. O que eu faço é delírio de bondade. Meu delírio é acreditar no sorriso. Você precisava acreditar comigo. Quando duas pessoas acreditam na mesma coisa, nasce um deus. Aí você não ia sofrer porque eu te daria razão. Que é na razão que o meu nome ganha forma, é real e bom, e que pode ser igual ao seu.

sem título IX [série "norte do sul"], 2019. 15cm x 21cm. lápis de cor, caneta esferográfica, lápis grafite e marcador permanente sobre papel

sem título IX [série "norte do sul"], 2019. 15cm x 21cm. lápis de cor, caneta esferográfica, lápis grafite e marcador permanente sobre papel