ALTO CALIBRE e outros poemas
/ALTO CALIBRE
Remando contra a maré no seu barquinho
de madeira ia registando antigas palavras
pequenas metáforas quebra-cabeças alguns
diagramas e o número exato de sílabas a
utilizar. Juntava papelinho a papelinho
imagem atrás de imagem palavra atrás de
palavra e parava para escutar as ondas da
maré que já ia alta. Remava remava no seu
isolado mar enquanto esperava pelo tempo
exato para a criação suprema. Mas adiava
adiava. Havia que criar a ilusão de que tudo
fora pensado ao mais ínfimo pormenor como
um relojoeiro de alta gama. Os dias foram
correndo e as pilhas iam aumentando as
notas espalhavam-se agora por todos os
cantos do barco e a obra-prima nunca
mais via a luz do dia. E vinham mais notas
outras notas e outras palavras e havia que
ouvir o mar o vento a água e a obra-prima
ainda por nascer. E remava remava e
reafirmava tudo aquilo que já fora dito.
Esperava sentado pelo momento certo
pela epifania que haveria de levar ao
poema. E de tanto esperar o frágil barco
afundando-se levou consigo o poema.
TETAS LAVADAS
A poesia exige (dizem eles em retórica fina)
preciosa lentidão. Contar as letras do alfabeto
dividir sílabas propor tabelas de sons exige
demasiado tempo. E há (para eles) que levar
o exercício da perícia pela pequena cidade.
É por isso que andam muito lentamente pelas
ruas da pequena cidade repetindo altos clichés
sobre a poesia. E quando se cansam de andar
param e esperam pelas lustrosas epifanias do
vale. E é por isso que tudo o mais não é poesia.
O poeta mede-se pelo tempo que demora a
escrever um poema (pensam eles). É por isso
que quem faz três por dias não pode ser poeta
nem saber escrever poemas (pensam eles).
Escrever mais de três poemas por dia é um
sacrilégio e se porventura forem publicados
online (a palavra online existe) como este é
é mera propaganda barata ou meros e altos
exercícios de monstruosidade. Tanta ordem
e tanto calibre para terminar nas Tetas Lavadas.
UM AÇORIANO MEU IRMÃO
a João Pedro Garcia
Lá fora é que é! Chega-se lá fora
(Ah lá fora!) e há árvores de fruto à
saída do aeroporto Mel sobre os
bancos do jardim Cerejas em cada esquina
e longas e longas cascatas de champanhe.
Maravilhas mil que aqui não tenho.
Ah lá fora é que é! Tudo é tão fácil lá fora
tudo entregue à mão de semear
tudo dado de mão beijada. Tudo doce
aos nossos pés. Ah lá fora!
E eu aqui a lutar de Sol a Sol feito
um cão nesta terra agreste e sem ter
ninguém com quem partilhar a minha dor
esta tão grande dor que me assola nas
pontas dos dedos. Ah lá fora!
Se eu pudesse ir lá para fora!
Eu que recolho todos os pedacinhos de jornal
que sigo à risca os desígnios da grande
crítica de culinária universal
eu que sigo as receitas mais elaboradas
da culinária francesa inglesa alemã
eu que mereço tudo isso estou aqui quase morto
sem o devido receber. Pobre sina!
Pobre minha sina!
Ah lá fora! Lá fora é que é!
CINCO FRASES FLÁCIDAS
A grande coxa cai a pique pelo coxim da bicicleta.
Balança o grande braço esvaziado.
O rabo cheesecake derrete ao sol.
Sobre o estendal estende o tempo a fina mama.
Pendentes os testículos sonham chegar aos joelhos.
O POEMA ENSINA A CAIR…
na cadeira de braços
na cadeira de baloiço
no sofá de couro
no coxim de cetim
no divã bege
na poltrona vermelha
na poltrona às flores
na chaise longue bordeaux
na chaise longue Marcel Breuer
Sean Leanders