CAMALEÃO - Oferendas I
/“é animado por essa sua capacidade de se anular que o
poeta pode entregar-se a essa pluralidade de corpos ou
criaturas”
- Manuel Gusmão a prepósito de John Keats.
“Aponto, logo multiplico-me.”
- Vítor Teves
ESPIGA
a João Miguel Fernandes Jorge
Infestação
por ELE
renovada.
Volta às pedras
`as romarias
armas.
Enche
na passagem
o rosto
muralhado.
Deixa cair o pálido
rico olho
nos cinzeiros de
prata.
Queima os dedos
Recanta!
Portugal Eunuco
a Jorge Sousa Braga
Este é o país que sonhou ser um colosso.
Um país onde dormir ao sol e comer caviar seria possível
no último grande shopping da Aldeia.
Um projeto de país onde as rãs saltitam aqui e ali nas escadas do poder.
Uma poça que sonhou ser lago:
País País País País
um cântico de rãs.
A rã do quinto direito, a do olhar de lado,
a rã do meu chefe, o do papo à galo,
a rã do professor, o que só versa em latim,
a rã da minha prima, a gorda arrogantemente estúpida,
a grande rã da preguiça, a do ler e do pensar,
e todas as outras rãs.
Rãs do lago de Aristófanes. Quem?
Rãs que mortificam
Rãs que amordaçam
Rãs que prendem
Rãs que nada fazem a não ser serem rãs: Carnívoras, venenosas, pegajosas.
Rãs que à falta de tomates fizeram do cérebro uma bola de futebol.
E no vazio do crânio o vácuo é a ilusão da inteligência.
*
Portugal é um quarteirão de vários quilómetros no inferno de Dante.
*
O verde da inércia, um certo tipo de verde, não é o verde daquela
paisagem cheia de milhafres, gansos e cedros.
Daquele lago azul onde passei a minha infância.
Hoje só me resta mar dentro de mim e cagarros.
É urgente cantar a natureza outra vez, queimar as interjeições e das suas cinzas criar
uma nova água de pensamento.
Límpida, pura e com traços da última impressora.
É urgente ensinar isso
numa linguagem direta
e crescer crescer crescer até ao mais profundo do Amor.
País eunuco
sem tomates e sem voz
só a natureza poderá salvar-te
fazer crescer entre as pernas a mais bela flor.
(19.02. 2015)
de Dentes Tortos (2017)
LENDO MALEVITCH
a José Manuel Teixeira
No deserto do real na espada que
abre
para a diagonal tudo dança no rápido
artifício onde a mistura dos corpos
fluem em
dinâmica expansão. Extensão. Contração.
Tudo cai além da
visível porta de preciosos
tons sem que o tempo seja chamado. E
Peter eötvos de perna cruzada lê
Malevitch
sentado na sua cadeira de palha virada pra
o lago suíco. E o tempo que lhe vai escorre
ndo
pelos dedos que seguram as páginas do ma
nifesto
desenha toda a pauta na já de si cheia cabe
ça de sons.
Mas temos de dizer que esta cadeira de pa
lha não
existe porque o plano desmonta-se tão rápi
damente
que não chega a dar a forma ao som que ex
plode.
O negro quadrado dança indiferente aos co
rpos
que se movimentam. Todos desejam
fundir
mas nenhum chega-lhe para o abraçar. E vo
ltando do sonho eis que a pauta
já se encon
tra escrita. Nela está este meu corpo moído
e estendido na plana superfície da emoção.
POEMA ALTERMODERNO
DE RECRIAÇÃO NEOCONCEPTUAL
DEPOIS DE RELER A PORTA DE DUCHAMP
DE/ A ROSA MARIA MARTELO
a)
Toda a música foi
desligada neste poema.
b)
Ler o mais lento possível.
c)
Uma paisagem derrete na memória.
Imaginar dois rios secos como duas frases
sem ligação.
d)
INSTRUÇÃO #4
Reescrever mentalmente a
palavra instrução
invertida num espelho
e)
Deixar cair o olhar na coluna que
cai
cai
cai
cai
cai
cai
f)
Reler todo este poema
rodeada de flores.
g)
Escrever dez vezes a palavra Sistema
e queimar de seguida.
h)
Imaginar que este verso é a linha do horizonte.
I)
Parar de ler por dois segundos.
Fechar os olhos.
j)
Imprimir este poema
morder o Canto Superior direito
e
atirá-lo ao lixo.
Marcel Duchamp - “Dust Breeding”, 1920.