REMIX: A CULPA É DE PETRÓNIO!
/“Tudo o que expurga a sua parte maldita
assina a sua própria sentença de morte.”
- Baudrillard
I
DELÍRIO BÁQUICO
Quiseram todos os senhores que eu me
aprontasse de luvas brancas e de olhos
cristalinos avistasse o puro e pleno dia.
Quiseram todas as senhoras que me
vestisse de branco e dissesse de manhã
à noite palavras de amor e púrpuras
flores cantasse por entre o jardim.
Pediram-me toda a eloquência pureza
amor suave e brancos jasmins de ternura.
Pediram-me tanta suavidade e claridade
que só em amargura soube trazer-lhes o
contraste. Sem que soubessem dei-lhes
a força negativa para se equilibrarem
na doçura e dela fazerem o seu traste.
II
Um Ano sem Barbara Stronger (1983-2019)
Isto são notas sobre a subtileZa (aqui deixei S/Z, de Roland Barthes, de fora) pelo menos, procuram sê-lo. Depois de derramar tanto sangue, um massacre, quem diria? Ninguém é só uma coisa, somos uma mistura de mil coisas, mil observações opostas; um lado masculino, um lado feminino, ou talvez, mil lados masculinos, mil lados femininos. Um espelho infinito, multiplicando-se. Complexidade, nunca simplicidade. Foi Pessoa, esse grande oxímoro, que disse que tudo é paradoxo, e ele tem imensa razão. Alguns têm essa consciência e praticam-na, outros procuram manter a fachada de que são altos edifícios, blocos rígidos de virilidade e masculinidade oca.
Vem isso a prepósito de Barba Stronger (1983-2019) que morreu, faz hoje, um ano. Foi com ela, essa grande Mulher, que aprendi algo muito importante: É preciso transformarmo-nos no Monstro para podermos matar o Monstro! Teógnis, há 2 500 anos, terá dito algo parecido, é preciso estar entre os Monstros para descobrirmos a nossa própria Resistência. Com ela aprendi a viver mais, a rir mais, sobretudo de mim. Agora que faz um ano que se suicidou, é preciso lembrá-la, e em agradecimento, contar aquilo que ela me trouxe. Foi tão pouco, e tanto ao mesmo tempo, que não sei por onde começar: trouxe-me Cysneiros, trouxe-me Brueghel, trouxe-me Ana Karerina, trouxe-me o riso, trouxe-me toda a revolta, trouxe-me ao sangue, trouxe-me à vida. Sim, à vida!
Aqui na moderna e grande cidade, somos todos Zombies, mas a verdade é que os artistas e os poetas sempre foram, de alguma forma, Zombies – seres meio vivos, mortos no seu canto com a luz da lamparina acesa sobre um livro. (Ver: o pensador de Rembrandt). Sozinhos, sempre sozinhos! E “fomos” isso tudo, e “Somos” isso tudo, pois não há criação sem o corte com a vida externa. “(…) a escrita exige solidões e desertos” – Sophia.
Hoje somos todos Zombies: uns por natureza (o poeta, o artista, o pensador) e os outros por imposição: a cidade, a multinacional, a moda, o fitness, a hiperinformarão, a tecnologia, etc. Estamos todos presos na malha, sem nos conseguirmos libertar! Moscas presas numa grande rede. E quando achamos que estamos livres, aí estamos, ainda, mais presos, presos a nós mesmos. O poeta e o artista estão duplamente presos, presos pelo exterior e pela força interior. O poeta e/ou artista é o Zombie mais putrefacto, aquele que não conhece salvação. Não passam de pontos negros sobre a superfície plana da terra, porros de explosão de matéria negra, forças de passagem de fluxos, “não-lugares” de carne. Trazem a luz à terra e expulsam, pelas suas entranhas, toda a negrura da terra. São meros e impotentes veículos de transformação, transformavam a negra força em luz. Coadores de esperança! E isso é ser Imenso! Pontos de contração negra e explosão de luz, pontos intermitentes, pontos tão incandescentes que cegam. Quanto maior a luz, maior a cegueira!
E todos querem conhecer o Monstro, e todos querem conhecer a fera, e todos querem conhecer a “ave rara”, aquela que só pede para estar sozinha. Sozinho como Michael K na montanha, o mais lúcido de todos, esse Atlas que suporta o vazio mais profundo, o que se mutila em nome das vozes que percorrem a cidade. E ele corre, percorre e discorre rumo à montanha para nela estender o seu corpo aos bichos da terra alta, é ele que os salva, o que alimenta esses seres da montanha. Sem ele, a montanha cairia sobre as vozes da cidade, sem ele, a montanha aniquilaria toda a vida, toda a forma de esperança; e tudo seria escuridão! E o poeta nega, nega a Escuridão Absoluta; e nega toda a Luz Absoluta! Só nele o equilíbrio existe, o equilíbrio que o constrói e, por vezes, o destrói! Um ponto centrífugo de queda permanente sobre o chão mais duro (Luiza Neto Jorge); chão duro e não pelos coxins de cetim que andam por aí.
E é por isso que a Barbara Stronger (1983-2019) merece, da minha parte, alguma consideração. Ela puxou-me violentamente para fora e, ainda hoje, trago esfoliações nos joelhos e nas pernas. Puxou-me e rasgou-me o pulso direito, o vermelho; e rasgou-me o pulso esquerdo, o azul. E, hoje, de pulsos rasgados, esvaio-me em sangue e não há quem o pare, não há quem estanque essa fonte que se abriu descontrolada, inundando, contaminando, misturando tudo para aflição dos puristas. Essa fonte espalhando vida e cor a quem já não sabe dormir, rir ou sequer parar. Deixo-lhe, em sua memória, o seguinte bilhete de amizade, um que seguirá amanhã diretamente para o inferno:
Mad Rush. Porto 10.07.2020
Querida Barbara Stronger,
és aquela em quem sempre quiseram colocar acento! Julgo que é por sofrerem a mania de enfiar carapuças em tudo e em todos. Querem todos viver dentro do texto, o que deve ser muito aborrecido, sobretudo quando não há luz. Mas a culpa sempre foi tua, devias ter beijado a mão do Padre, aquele que depois da missa vai rezar na barquilha do sacristão; devias ter cumprimentado, na hora certa, o Presidente da Câmara; ido na procissão do Senhor; e claro, devias ter lido Horas Fúnebres de Mestre Feliciano e não o Satyricon de Petrónio. E, claro, tudo acabou mal. Mas, como dirás desse lado: Tudo sempre acaba Mal! Esta é a grande e única verdade. Não te roubo mais tempo! Espero que estejas bem aí no inferno! Se precisares de algum livro manda-me um telegrama como os de Lisboa. Tens aí o Quarteto? Ou esse ainda continua requisitado pela Madre Beata do andar de cima?
Porta-te mal. Deste que (não) sente a tua falta:
Vítor Teves
Ps- Kafka, o daqui, sente falta da tua cabeleira e unhas de gel sobre o dorso.
III
ODE A ALGUNS EDITORES DE POESIA
Lírio Lírio Lírio Lírio Lírio
Lírio Lírio Lírio Lírio Lírio
Lírio Lírio Foda-se! Lírio
Lírio Lírio Lírio Lírio Lírio
Lírio Lírio Lírio Lírio Lírio
IV
EPÍLOGO
SACO DE BOXE
O novo saco de boxe apareceu
pendurado da noite para o dia
no átrio principal do velho edifício.
Toda a criatura de nome passou a
ter por objetivo passatempo irritação
bater no novo saco de boxe.
Havia que deixar a marca no saco
que iria dar alguma existência aos
esquecidos nomes da velha cidade.
Assim em fila todos iam batendo
no novo saco e o saco remexia-se.
Por vezes balançava e no balanço
metia-os a todos no chão com
enorme e barulhento estrondo.
Mas continuavam havia que deixar
a marca de que estavam vivos
a marca da sua pequena existência
sobre a pele negra e brilhante do
novo saco de boxe da cidade.
Bateram tanto que o desprezado
saco tornou-se com o tempo relíquia
e a marca irredutível do seu tempo.
Das mãos que outrora batiam das
leves moças nada ficou registado
no resistente novo saco de boxe.
Nem uma unhada nem a mais intensa
irritação ao novo saco de boxe.