Generosidades

GENEROSIDADES

 

Ainda bem que partiste
a nossa vida em dois
e levaste a pior parte. 

Tão lastimável ver
dois corações ásperos
em refrega mesquinha
defendendo fronteiras
(Alto! além  pele ninguém passa)

Os livros, por exemplo,
são coisas  simples de dividir
rasgam-se metodicamente ao meio
para cada capa, a sua contracapa
e aí... foi pacífico que eu ficasse com os inícios.
A ti, couberam-te  todos os finais. 

Cada um soube dos seus territórios
e fomos razoáveis. Impossível
é partir uma pedra ao meio: levaste-as todas;
e afinal, bem vistas as coisas,  todas eram tuas. 

Filhos não tínhamos             e amor
nunca quiseste arranjar nenhum.
Tinhas razão; dava muito trabalho
e ocuparia muito espaço num peito
tão pequeno. 

Houve objectos difíceis de repartir mas
evitámos pugnas e contendas
como outros casais com tristezas
ainda mais tristes
do que a  nossa tristeza 

casais, disputando a mobília,
a conta bancária, o televisor… 

Aí, terás de concordar,
fui magnânima... prescindi
a teu favor dos vasos das orquídeas,
das magnólias, das náuseas, os fastio de cheiro,
aquele engodo, que regavas com carinho
e fizeras florescer à nossa janela (começava
já a dar os primeiros frutos). Levaste-os:
são teus…eu iria esquecer-me sempre de os regar. 

Ainda bem
que nos partiste em dois     
levando contigo  a pior parte. 

 

 

GENEROSIDADES II

 

 Como é a tua vida com uma mulher
vulgar, sem divino?
Agora que destronaste a tua rainha
e tu mesmo renunciaste ao trono,
como é a tua vida?

Marina Tsvetáieva (trad./versão de Paulo José Miranda)

 

 

Como é a minha vida   agora
sem um homem vulgar? 
Mais triste, não?... 

Triste  como perder o chão
de um sorriso espúrio ou
a alegria exígua da noite
extinguindo o dia.  

Nem que seja por um instante (um fósforo ardendo)
quando se toca o zénite da cegueira
até ao raso  de um poço fundo;
depois de alcançado o imo pródigo  
de um coração corrupto e descomposto    
como saber regressar, voltar atrás... 

Esterilizar os lençóis    a pele poluída? 

Como vivo agora sem esse homem vulgar e
sem divino, que circulava como sísifo
carregando a pedra da banalidade
às costas? 

Há que voltar atrás,
negar gomorra, sacudir o sal
do corpo e acolher de novo
a lucidez  puríssima
das manhãs do Olimpo.  

Eu, Madalena de rastos, 
cumprindo com desvelo
a plenitude do amor mais frívolo 
a  transcendência de uma paixão asmática.  

Respirando, num silvo agudo, a poalha de vidro,
aspirando a bomba, a falta de ar, minuto a minuto,
vencendo cada beijo a cortisona.  

E os  coágulos do sangue coalhando
no coração sublime. 

A minha vida, agora, sem esse homem vulgar:

Ser  Helena em Tróia,
subindo, sem esforço,  ao pedestal,
mármore precioso de carrara,
minha pertença, de onde
houvera tombado para ir habitar
o trono plástico de um homem       vulgar. 

Como é agora, a vida, sem esse homem?

Melhor, não?

Voltei a dançar descalça

sem medo de ferir a palma dos pés
com o engodo espinhoso   do fastio
dançando entre os meus
a música livre clara e límpida dos vitrais  

O peito colado ao coração dos deuses...

Acima de tudo melhor, muito melhor,
do que essa mulher, pobre mulher sentada,
agora, a seu lado no tamborete grosseiro de verga
onde se descansam os homens
banais.  

Desventurada  penélope, pobre, tão pobre
esperando e esperando, quase velha, as costas
curvas sobre o tear, as mãos ásperas e tesas
bicadas da costura, sonhando ulisses
já repassado por todas as mulheres
todas as deusas   feiticeiras --até por mim 

Melhor, bem melhor, que essa mulher mortal
fiando em sonhos um ulisses qualquer:
Qualquer um lhe serviria, mesmo  que velho,
senil,  imundo, sem cabelo
mas ainda assim, ulisses, com a cicatriz
encardida no tornozelo.  

Pobre mulher em Ítaca, tão só, tão pobre,
roendo a tristeza da ilha a pobreza do sal  
o mar  em redor   só sal em toda a volta,  

Pobre mulher tecendo ulisses
que afinal não veio: nunca virá
(e qualquer um lhe serviria
desde que lhe chegasse com os ventos
vinte anos, trinta anos, cinquenta:
esperaria quanto tempo
os deuses lhe concedessem) 

Triste penélope nenhum ulisses, nem argos, pretendentes,
mulher vulgar sem trono, a teia feita por mil vezes
e desfeita por outras tantas mil,
desacorçoada penélope  as mãos em sangue
os olhos quase cegos bordando noite dentro 

velha mulher ainda jovem, gengivas nuas
acolhendo o único afogado inútil
que deu à costa inânime, encalhado
num enredo de lodo e limos
arrastado pelos mares.  

Um homem rude, vulgar, com a ferrugem
expressionista dos dedos esfolando-lhe pele
como se fora carícia. 

E a minha vida? Era isso que perguntava.
Como é a minha vida agora sem esse homem?
vulgar? 

Melhor.
Muito melhor, não?