Elogio da Dúvida - Recensão
/«Os melhores despedem-se de toda a convicção,
Os piores vão plenos de apaixonada veemência.»
(Yeats, W.B., Poemas Escolhidos, tradução de Frederico Pereira, Relógio D’Água, 2017)
Em Elogio da Dúvida (Edições 70, tradução de Jorge Melícias, 2021/2016), Victoria Camps, Catalã, faz exatamente aquilo que está no título. Não se trata de retornar ao niilismo radical dos cínicos gregos (aliás, mais ficcional do que histórico), contrapeso a um racionalismo que sacudia excessivamente os hábitos da época. Mas de usar a razão para combater dogmas e disposições que usam em vão a palavra verdade. É por isso que Camps prefere Esménia a Antígona, aquela é sobretudo dubitativa, ponderada e reflexiva. É que não se trata da dúvida fingida de Descarte, mas da de Montaigne (o herói do livro).
Com tantos séculos de civilização, com tantos séculos de erros, continuamos a ansiar por verdades, e é por esta porta que entram, e se multiplicam, os fanatismos. É este o perigo da verdade, a sua condição de existência não permite a dissidência. Todos juntos, a pensar e a sentir a mesma coisa, ou se desdenha ou se combate o estrangeiro, duas formas de destruição da diferença. Camps usa A Vida de Brian, dos Monty Python, para exemplificar a vontade de eliminar o divergente.
As raízes do fanatismo estão na incapacidade de pensar criticamente, a partir daqui crescerá uma autossuficiência pronta a acreditar que fala em nome da verdade, o islamismo serve de paradigma à autora. Montaigne estava totalmente fora desta disposição, desconfiando, mais do que Descartes ou Espinosa, do poder da razão para chegar à verdade. Em consequência, nos Ensaios, e para evitar que se imponha, decrete a verdade (é bem isto que constitui os fanatismos), elogia repetidamente, numa linha aristotélica, a moderação. Que, aliás, considerava mais difícil de concretizar do que os extremismos: «O povo engana-se. É muito mais fácil andar pelas margens, onde os extremos servem de limite, de freio e de guia, do que pela via do meio, larga e aberta».
Transportando esta tese para um campo metafórico e socorrendo-se de El retorno de los chamanes de Víctor Lapuente, Camps confronta a figura do político xamã (faz grandes promessas, tem tendências revolucionárias e autocráticas, ataca aos adversários) com a do explorador (responde a problemas concretos, assume erros, corrige-se). Nos países nórdicos praticam-se mais as políticas exploratórias. É também aí que se vive nas virtudes sãs do relativismo e da auto-irrisão. No Sul, prefere-se, pelo contrário, a bazófia e as grandes palavras: justiça, paz, liberdade, democracia. Palavras que sem pensamento crítico parecem absolutos mágicos, intrínsecos ao politicamente correto. Como quando se escreve «democrática» no nome de um país, sabe-se imediatamente que é uma ditadura (República Democrática Alemã, República Popular Democrática da Coreia…).
O Elogio da Dúvida é um livro para todos, inteligente e substancial, sem excessos de erudição ou uma linguagem enfeudada numa arena académica. E não tenham receio de, depois de o lerem, ficarem enredados em dúvidas intermináveis. Só se fica menos dogmáticos e mais preparado para relativizar o autocontentamento.
4 estrelas.