Eduardo Quina, Consanguíneo - nota de leitura
/O último livro de poesia de Eduardo Quina, Consanguíneo, Officium Lectionis Edições, 2021, traz o esplendor de uma poesia que talvez ainda não se tivesse revelado totalmente. É como se finalmente o rio, ou rios, chegasse ao delta e aí justificasse todo o caminho, cheio de imprevistos e de tentativas, precedente. Não se trata, porém, de um «esplendor» qualitativo, uso o termo para traduzir uma emergência avassaladora. Resultado de um esbatimento da tensão antagónica entre as pulsões de vida e morte, agora desaguamos numa única grande, incalculável economia do thanatos, percorrida por uma violência autoengendrada.
Para quem acompanha o exercício poético (movimento de um corpo pleno) de Eduardo Quina, verá em Consanguíneo (uma irmandade de sangue trágica: «o processo ôntico e fúnebre / da consanguinidade») o extremar de um horizonte de sentido (mais total do que parcelar, mais de arrebatamento do que de discernimento) que habitava já os seus poemas anteriores. A linguagem (clara/obscura), o bem/mal (metafísicos, sobretudo), deus (presente/ausente), a redenção, o desespero, a dor, a morte, várias formas de abismo, um pouco de luz (inesperada e limitada, avarenta e fugidia).
Consanguíneo é um manifesto que ilumina a escuridão (mas a claridade gasta-se logo à entrada das trevas e o excesso de lucidez, que poderia alinhavar artimanhas ontológicas, queima), rastos da luz que presidiram ao começo do mundo, no qual o divino palavroso fez tudo mal feito, «afinal somos o projecto falhado dos deuses», e depois, com a nossa cumplicidade, remediou a incompetência com um tecido de ilusões, um deus que «descansa de todas as mortes» (uma soberania divida fundada no bem seria capaz de, imediatamente, originar uma vontade geral boa). O ofício do poeta (porventura anódino: «o sacrifício inútil da poesia»; «a poesia nada pode»; «a poesia é uma farsa.»…) é, sem qualquer convicção épica, traduzir em palavras, com estas exatas palavras, a «nossa dor insuportável e definitiva». O que seria da dor se as palavras, aparentemente redundantes, não lhe dessem voz? Se o livro insiste na irrealidade da redenção, o que seria de nós se o poeta não abrisse, também ele, a caixa de Pandora, e nos dissesse que mais fragmentos de niilismo se soltaram logo no primeiro gesto de curiosidade perverso de… talvez deus? Nos dissesse isso, e desta forma — como quem angustiado por uma espada de Dâmocles conhece, finalmente, o desfecho sangrento — nos desiludisse: as coisas são assim, se aguentares mereces ver-te ao espelho sem te enojares. Mas o teste é exigente: «crianças brincam / na dor imensa / de serem mortais. / deus não lhes fala: / é o enigma da cegueira.» ou
«a criança espera pacientemente os predadores
construindo através de pequenas linhas
as gaiolas
onde os intermináveis pássaros negros
esperam resignadamente
as vozes e os vultos da fome
[uma simetria da doença de deus]»
Quando olhamos para a composição do livro, percebemos, desde logo pelos capítulos — «Morrer ou Enlouquecer»; «O Jogo da Cabra Cega»; «Natureza Morta»; «Maligno»; «Ausência»; «Labirinto»; «Cegueira»; «Epitáfio» —, que colocar O Triunfo da Morte de Pieter Bruegel na capa não foi um acaso estético. Consanguíneo é uma epístola, talvez laica, sobre o morrer e a via despida, desgraçada que nos conduz até lá. As positividades são demasiado dolorosas (encenadas num teatro da crueldade com mães e filhos sem afetos, o cordão umbilical rasgado a golpes de desespero, a dor em cada segundo de vida, um deus da facécia e da impotência, uma linguagem que esfaqueia os bem-intencionados) para que uma negatividade, à maneira da fenomenologia sartriana, traga o que quer que seja de bom (é que «os pulmões são feridos pela respiração»). Talvez aqui haja essa radicalidade do mal que Hannah Arendt quis, numa estratégia anti-messiânica que se percebe, suprimir. Um mal metafísico que impede, por isso mesmo, a redenção:
«tens o corpo tombado sobre as flores:
O eco de uma outra língua
Esquecida no passado
Quando cristo chegou estavas morto:
O rosto desfigurado pela verdade
[depois as palavras da ressurreição:
Estavas novamente pronto para o sofrimento]
Eduardo Quina conclui o livro com um epitáfio, a última estrofe diz: «precisava tanto que não tivesses morrido». Se lançarmos este apelo noutra direção talvez acabemos por apanhar um «precisamos todos de viver», transformando o abismo do abandono num amor fati que exulte com a nossa condenação à liberdade. Se o olhar de deus é inútil, se a ideologia se tornou irremediavelmente inconsequente depois da dissolução do eu, então, respondendo ao poeta, somos nós que devemos conduzir esta cegueira, alimentando-nos, como diz Eduardo Quina, da «brutalidade do real». Sabendo, contudo, que «estamos sós diante da nossa solidão». Mas, numa resignação estoica cruzada com a ontologia teológica leibniziana, «Talvez este seja o melhor dos mundos possíveis», por isso: «fecho a porta e assisto ao milagre do fogo». (Re)citando uma ideia de Rui Chafes, que Eduardo Quina põe em epígrafe no capítulo sobre o Maligno, «A beleza é impossível sem as marcas da morte». Certo, mas redobrando de intensidade (o que não desautoriza totalmente algumas paragens redentoras, por exemplo no poema da página 175), Eduardo Quina escreve: «se ao menos a morte te aliviasse da dor.»