O pequeno-almoço

Padaria Kora, Atenas. Fotografia de Mariana Bisti.

Para a Inês

 

Aquilo de que melhor me lembro sobre Breakfast at Tiffany’s são as cenas em que o gato, Cat, é abandonado e reencontrado num beco. E, claro, a cena inicial, com Audrey Hepburn a comer o pequeno-almoço em frente à montra da famosa loja de diamantes. Imaginei sempre que Truman Capote devia ter visto toda a novela desenrolar-se a partir do momento em que lhe ocorreu a primeira imagem. Por outro lado, ainda estou para encontrar uma coisa humana que seja expressão mais acabada de um recomeço do que os pequenos-almoços. Num dos seus poemas mais famosos, “Anunciação,” Ruy Cinatti escreveu que nós não somos deste mundo, mas que “anoitecendo, a vida recomeça.” Esta vida que recomeça de noite, à medida que o poema continua, chega à manhã e a um amigo nómada, que se vem aproximando, mas ninguém nesse poema toma o pequeno-almoço.

Estou a pensar em manhãs e pequenos-almoços porque há pouco tempo tive uma discussão com uma amiga que começou por ser sobre colonialismo e acabou a ser sobre pequenos-almoços. Não sei como chegámos aí. Há um verbo inglês de que gosto muito e que uso pouco. Meander. Meandering é o que se diz dos cursos dos rios com as suas muitas voltas, com a sua forma de labirinto, mas também pode ser dito de alguém que segue um percurso intricado ou de alguém que vagueia sem grande plano ou destino. Gosto das minhas conversas como os cursos dos rios pendem para as suas complicações. A minha conversa sobre colonialismo com a Inês, andou e andou, e andou até que já não tinha nada a ver com isso e acabou no pequeno-almoço. Aliás, acabou com a memória dela de um poema sobre um pequeno-almoço histórico (Russell Edson, “The Historical Breakfast”), em que um homem declara cada elemento desta refeição, em toda a sua banalidade, histórico. Mas daí lembrámo-nos de A importância do pequeno-almoço da Francisca Camelo. Os pequenos-almoços podem ser pequenos teatros. Não são, talvez, Históricos (embora alguns o sejam), mas são históricos, culturais, políticos, têm elementos sociológicos (daí nos termos lembrado do livro da Francisca). Pensei, por uma vez, que seria possível fazer o balanço de um ano em pequenos-almoços, como é possível medi-lo em livros lidos ou séries vistas, e que isto não seria completamente disparatado.

Por exemplo, o pão que normalmente como ao pequeno-almoço, em casa, quando estou quieta em Oxford, no princípio deste ano custava £3,40, o que nunca me pareceu extraordinariamente barato em comparação com o pão da minha infância rural, passada num pequeno país do Sul da Europa, onde penso que talvez o seu preço não chegasse aos cem escudos, e, tenho a vaga ideia, de que com a mudança da moeda terá passado a 1€, mas talvez esteja a exagerar. Cerca de vinte anos estão agora entre mim e essas memórias. O pão que compro para o pequeno-almoço em Oxford custa neste momento £4,50, é talvez o mais caro que alguma vez foi desde que tenho memória de comprar pão. É o primeiro ano, no entanto, em que o compro depois de uma pandemia seguida por uma guerra. O preço do pão que sobe preocupa-me, faz-me pensar demasiado em imagens que vi em manuais de história, de cartazes com o preço do pão na Alemanha entre as duas guerras. Faz-me pensar mais em imagens de fome do que no pequeno-almoço.

O meu pão inglês é classe-média até à náusea do cliché e tive de fazer alguma pesquisa até descobrir ao certo onde o comprar. O pão inglês nunca é facilmente bom, em muitas lugares que vendem pão nem sequer é feito todos os dias. Isto diz qualquer coisa da relação deste país com a comida. O meu pão é comprado em padarias com nomes pretensiosamente franceses ou dinamarqueses, onde se vendem tipos de pão inspirados em diferentes países e continentes. O pão que eu compro é producto e reflexo de uma sociedade cosmopolita e global.

O pão que não é classe-média que entra nos pequenos-almoços ingleses de pessoas que não podem pagar £3,40 por a loaf of sourdough bread (o pão que eu sempre tinha achado normal, que é fermentado, mas que é afinal, neste país, pão gourmet) é comprado normalmente no supermercado, é tipo Panrico e é pensado para sobreviver a um ataque nuclear. Não digo isto em qualquer espécie de bom sentido: é um pão com zero valor nutricional, ao qual a dado altura, por lei, o governo inglês decretou que tinha de ser adicionada vitamina D, por causa da insuficiência crónica desta vitamina que afecta as pessoas que em regra o consomem, que na verdade somos quase todos, porque ninguém lhe escapa na proverbial sandes do almoço. Atrás deste pão muito mais barato há uma verdade triste e inescapável: a de que Inglaterra é um dos países mais desiguais da Europa. E isto é visível em algo tão mínimo como o pão.

Durante a pandemia, na pastelaria dos libaneses em Cowley, o dono instituiu a regra de dar pão e comida fosse a quem fosse, se a pessoa dissesse que não podia pagar. Surpreendia-me saber que esta pessoa tinha, noutro capítulo da sua vida, vivido como corrector de bolsa em Londres. E depois tinha-se fartado de tudo e aberto este lugar, logo no início da pandemia. Tenho uma amiga com quem costumava tomar o pequeno-almoço que é historiadora do império romano e que tem muita dificuldade em aceitar que as diferenças sociais sejam tão óbvias ao nível de algo tão básico como pão. A minha amiga teve uma infância rural como eu. Diz-me às vezes que um dia se fartará da história do império romano e que poderá depois abrir uma padaria e que esta é a profissão mais digna que ela conhece. Eu digo-lhe que aparecerei para comprar o pão do pequeno-almoço. As padarias fascinam-me de manhã, quando tudo ainda está prestes a começar.

            Há cidades neste continente onde amo tomar o pequeno-almoço, sobretudo se estou com tempo, e outras em que odeio. Odeio, por exemplo, tomar o pequeno-almoço no centro de Roma, onde vou errando de café em café, cada qual mais apinhado de turistas, onde um cornetto, a versão italiana dos croissants, custa um preço absurdo, para turista, que é a expressão de uma falha de hospitalidade e da monopolização de um centro de uma cidade que não tem existência para lá do turismo. É um teatro sem vida, uma natureza morta esse pequeno-almoço desmaiado nessas mesas inóspitas. Como se pode começar um dia assim? Não se pode entender ao certo o que é tomar um pequeno-almoço em Roma num destes cafés. Há, no entanto, excepções. Como por exemplo, aquele pequeno café em Trastevere, não muito longe de Piazza Trilussa, cujo nome agora me escapa, um pouco escondido, demasiado parecido com os cafés de Lisboa. Mas em bairros mais afastados do centro de Roma pode entender-se mais facilmente o que seja esse pequeno-almoço, um cornetto, um cappuccino e um expresso, por favor, digo num italiano que funciona, em Pigneto, o bairro onde Pasolini filmou Accattone, ou em San Lorenzo, onde isto custa ainda, apesar da inflação, qualquer coisa como 2.50€, e onde estou rodeada de romanos que estão a ler o jornal ou a olhar para o telefone, ou que saíram para passear o cão, ou que se preparam para ir trabalhar. A pulsação da vida nesta cidade atravessa este momento. Os cornetti lembram-me, apesar das diferenças, os croissants que se pode comer ao pequeno-almoço no Porto. Também os cafés de Roma e do Porto se parecem. É um cliché dizer isto. Estou aqui à procura de uma afinidade entre duas cidades que amo muito.

            Há cidades em que tenho rotinas maníacas para tomar o pequeno-almoço, que denunciam as minhas obsessões com voltar sempre aos mesmo lugares e por trás disso sei que se esconde o meu amor por certas ruas, por certas pessoas em certas ruas, com um sentido de fidelidade e uma gratidão natural, quase inconsciente, um pouco comovida. Isso acontece-me, por exemplo, se estou em Lisboa e resolvo atravessar metade da cidade só para ir tomar o pequeno-almoço ao café Luanda, as torradas e o galão, uma combinação através da qual regressa por um instante toda uma estação da minha vida que desapareceu e não voltará nunca mais. Reparo com isto que sempre que mudei de hábitos em termos de pequenos-almoços houve alguma mudança sísmica na minha vida, algum grande corte.

Em Chiaia, em Nápoles, há um café diante de uma piazza onde por vezes vou tomar o pequeno-almoço, e envio sempre uma fotografia desse pequeno-almoço a um amigo. É raro cruzarmo-nos nesta cidade da qual gostamos muito os dois. Quando é ele quem cá está, é ele quem me envia uma versão desta imagem. Piada, provocação e nostalgia são os sentimentos deste ritual que, bem vistas as coisas, não pode ser chamado de anódino.

Há os meus pequenos-almoços em Atenas, que são muitas vezes solitários, empreendidos cedo e antes de me juntar a um amigo ou outro, e isto acontece porque sei que nem um santo talvez teria paciência de os tomar comigo. Começam normalmente numa padaria que fica num bairro que se chama Kolonaki até onde normalmente ou tenho de andar um pouco ou fazer um desvio e a padaria fica no topo de uma colina. O cheiro do pão e dos pães de canela e de cardamomo consegue sentir-se desde cá de baixo, consegue ver-se também uma pequena fila de turistas e locais madrugadores, mas esta fila vai aumentando à medida que a manhã avança. Compro um pão de canela com o azul do horizonte ao fundo da rua e começo depois a descer em direcção a Exarchia, com a colina do Licabeto, onde Aristóteles se despediu de vez de Atenas, atrás de mim e é só em Exarchia, num café com uma montra que um grupo de anarquistas partiu em protestos, e assim ficou, que compro o meu primeiro cappuccino do dia. Não venho aqui por causa do café, embora não seja mau, e há a vantagem de haver leite vegetariano, mas porque uma amiga me apresentou este sítio, que fica diante de um apartamento que partilhámos durante parte de um verão. Mas este é já um pequeno-almoço muito urbano e até turístico para Atenas, que talvez lembre a minha amiga dos cafés de São Paulo, onde ela vive, que reflecte uma opção dietária perpassada de preocupações para com o planeta e para com os animais. Mas um pequeno-almoço ateniense não se encontra nem nesta padaria de Kolonaki nem nesta completamente coffee shop, vinda de Londres ou Berlim, uma aberração em Exarchia, bairro de anarcas, sintoma de uma gentrificação que virá e será implacável, e que acabará, temo, com muitos dos fournos, as padarias gregas, onde o pequeno-almoço para mim é muitas vezes bougatsa, uma espécie de tarte com doce de leite, ou croissants de chocolate, e café grego, que, na verdade, é café turco.

Quando me apetece tomar o pequeno-almoço em Atenas sem andar de um lado para o outro em busca, afinal de contas, da minha versão matutina daquilo a que Tom Waits chamou numa canção de heart of Saturday night, há um café que amo, perto do museu da Acrópole, que de noite é um bar, que se chama Lotte, onde gosto de me sentar a observar as pessoas. E gosto do nome do sítio, que é tirado de Goethe, e eu queria muito conseguir imaginar o que seria Lotte em Weimar em Atenas.

De tudo isto se conclui que os pequenos-almoços são históricos, mas também a-históricos, políticos e privados, actos de busca e da imaginação, expressões de gratidão idiossincrática pelo dia que começa, mas também, por vezes, actos de intensa nostalgia. Mas a nostalgia, creio, não é necessariamente uma forma de saudosismo barato ou de sentimentalismo, embora, claro, também seja isso (e às vezes penso que não há nada de errado com certas formas de sentimentalismo). Mas pode ser também uma maneira de resistência, um gesto para abrir o livro em branco de um dia e tentar amar as horas que estão por vir.