O teu amigo
/é difícil
não saber
como começar
é mais seguro
partir do princípio
de que isto
será olvidado
num caderno
que mais cedo ou mais tarde
vai parar ao lixo
recordas-te
quando o teu amigo te contava
como ele e uma rapariga
estavam apaixonados
como se procuravam constantemente
até que ele decidiu
não mais ir ter com ela
não que o amor
tivesse enfraquecido
mas ele ansiava
por sensações mais fortes
e mais forte
do que o amor
apenas
a privação do amor
e como mais tarde
se encontraram na rua
e o que ele viu
nos olhos dela
foi ódio
e também isso
não lhe desagradou
olvidaste-a?
ele riu-se
com o ridículo
da questão
*
pelas margens
dos cadernos
de Matemática
e Química
floresciam cadáveres e quimeras
ele era
um artista
o teu amigo
e um ponto vermelho
batia no meio
no lugar
do coração
os quartos
vazios
e ainda assim
desarrumados
cresceram também
à margem
dos anos
*
o teu amigo
na adolescência
fugiu de casa
decidira
ser artista
viveria aonde o acaso
o trouxesse
dedicar-se-ia inteiramente
à sua arte
sem concessões
foi uma aventura inolvidável
a viagem
e depois
o céu estrelado
como só é possível
numa noite de verão no campo
deitou-se ao ar livre
cheio de sonhos
o teu amigo
trouxe até consigo uma almofada
no dia seguinte
regressou a casa
a mãe estava ausente
nunca
ficou a saber
da aventura
eu sou
o veículo da arte
a condição
sine qua non
a arte é inevitável
esteja eu
onde estiver
posso muito bem
ser artista
a partir de casa
basta
não me acomodar
*
o teu amigo
deixou a casa
anos mais tarde
contou-te
quando tomavam café
empacotar frangos
algures em Inglaterra
apanhar papoilas
nos arredores de Roterdão
tu não sabes
o que é a vida
meu rapaz
tu aqui
não viste nada
não sabes nada
tu não sabes
o que é a vida
tinha
os olhos
embaciados
ainda desenhas?
ele mostrou-te
o caderno
não arte verdadeira
ele tinha
de admitir
mas os alicerces
da verdadeira arte
exercícios preparatórios
apontamentos para
o que viria a seguir
esta é a mulher
com quem quase casei
apontando
para o desenho
de uma mulher
rabiscado
a esferográfica azul
tem olhos tão azuis
vês
vês
como são azuis?
odeia-me tanto
que engravidou
de outro homem
*
máquinas
murmúrios
o som
que te liga ao mundo
já não é
o da respiração
um outro sopro
artificial
acho que ele está
a acordar
parece estar
a abrir os olhos
até nisso falhaste
fechas os olhos
fechas-te
em ti mesmo
nenhum outro lado para ir
mas o coração bate
bombeia
algo negro
a alastrar pelo teu corpo
a cobrir os membros
olvidaste-a?
foda-se
aquele
atrasado mental
o atrasado mental
sou eu
tentas reprimir
as ondas de bílis
que te cobrem os nervos
não tens força
para os enfrentar agora
tão implacáveis
a exigir explicações
com a sua pena humilhante
o seu
amor humilhante
até que não aguentas mais
e um soluço irrompe
depois as lágrimas