Fleabag

Atenção, contém spoilers.

Estou e não estou inscrito na economia da atenção. Tenho assinaturas digitais nos jornais Público, El País, Le Monde e The Guardian, na revista Philosophie magazine, Netflix, HBO, Amazon Prime e Spotify, uso, embora com uma certa sobriedade, o Facebook e mantenho contactos presenciais e à distância com pessoas muito informadas que vão preenchendo algumas das minhas lacunas . Parece, a mim parece-me, pletórico. Mas com uma certa disciplina do esquecimento e leituras lentas, não me sinto afogado na atualidade e no efémero. Demonstra-o só há pouco ter descoberto uma série, Fleabag, cómica à sua maneira, com duas temporadas entre 2016-19. Em boa verdade, já havia sido informado dos seis Emmys maiores que ganhou e visto uma entrevista da criadora / produtora / escritora / atriz principal Phoebe Waller-Bridge, com um sentido de humor arrebatador. Foi esta entrevista, aliás, que me despertou o interesse, mas como tinha presente alguns episódios do Killing Eve, é ela a argumentista e produtora, mantive a moratória. Não digo que Killing Eve seja má, o talento de Phoebe para narrar histórias possíveis e impossíveis é invejável, mas há demasiados deus ex machina.

Finalmente, até porque tem 8,7 no IMDb (embora o rating desta plataforma digital deva ser contextualizado, há séries e filmes francamente maus que ultrapassam os oito pontos em dez), e, menos importante, apeteceu-me justificar o que pago pela Amazon Prime (na realidade, os portes grátis dos livros e de algum material de ténis compensam bem a anuidade), vi o primeiro episódio (o on demand é incrivelmente tentador, uma quantidade enorme de mundo está permanentemente ao nosso dispor; por outro lado, ficamos mais caprichosos, uma cronologia que depende somente de nós torna-nos reféns dos impulsos).

E foi então que a pequena promessa de felicidade inicial se amplificou até um incondicional deslumbramento.

Phoebe Waller-Bridge compõe uma personagem, Fleabag, que torna risível, e sobretudo auto-risível, situações, diálogos e poses individuais, sem cair nos clichés gastos da comédia mainstream. E faz tudo isso mantendo um realismo só ligeiramente extravagante.

Fleabag gere um restaurante (durante parte das duas temporadas da série sem muito sucesso económico), cuja sócia morreu atropelada quando tentou ter um pequeno acidente para simular um suicídio, queria mais atenção do namorado. A desatenção resultou, numa ironia quase trágica, de ter dormido com a cogerente e melhor amiga, Fleabag. Esta desenvolve então um sentimento de culpa que a lança, muitas vezes sem critério, à procura de redenções. O acontecimento, que nunca ultrapassa o quase-trágico, serve também para expor o apetite sexual um pouco discricionário de Fleabag, incompatibilizando-a com um namorado demasiado straight, pelo menos na cama. E em parte com uma irmã neurótica, mas financeiramente bem-sucedida. Há também um cunhado infantil e libidinoso, um pai que raramente completa as frases, contrastando com a agilidade nos diálogos da filha, e uma madrasta que tem o melhor cinismo que vi nos últimos tempos (interpretada pela magnífica Olivia Colman). A mãe, essa morreu, mas só assombra em pequenas doses a economia das peripécias.

Destaco o aparecimento de um padre, Andrew Scott, na segunda, e última, temporada (o primeiro episódio, em torno de um jantar cheio de mal-entendidos e com uma vertiginosa economia de réplicas, é divinal). Os diálogos à volta da fé, das razões que a podem sustentar, a libido, espiritual e carnal, os prazeres mundanos, puros e impuros, o significado das práticas religiosas, a hesitação entre namorar com Deus ou com Fleabag, tornam a segunda temporada ainda melhor do que a primeira. O padre permite melhorar a complexidade dos diálogos, introduzir mais ambiguidade nas personagens (um aspeto essencial para a qualidade da série, parece, aliás, que a autora se exercita a surpreender-nos com uma dose extra de ambiguidade sempre que uma ou outra personagem consolida um traço de personalidade, é assim sobretudo com a madrasta e com o pai). Ambiguidade que emerge também no jogo que estabelece com os espectadores; o espetador estético, de que falava Nietzsche, é surpreendido pelos apartes que Fleabag, ou Phoebe Waller-Bridge, não sabemos, estabelece diretamente (bom, há sempre mediações) com ele, desviando o olhar da ação ficcional para o confrontar em modo metaficcional. Um achado que sofre uma torção quando o padre julga que essa cumplicidade com os espetadores é, afinal, um vislumbre de uma metacomunicação, talvez com o divino. De igual modo, num momento específico Fleabag, ou Phoebe Waller-Bridge, também não sabemos, tem um gesto pudico (contrariando o seu natural despudor) relativamente à equipa técnica, lembrando-nos de que há uma realidade real, chamemos-lhe assim, a par da realidade ficção. Isto serve também para não normalizar a extravagância, nenhuma personagem se acomoda na caricatura.

Finalmente, em jeito de aviso, reafirmo que Fleabag não tem nenhuma linha de fuga para a tragédia, e isso é voluntário, a autora mostra-nos bem onde tal poderia ter acontecido (na morte da amiga ou quando o padre diz que quer continuar a estar casado com Deus), para deixar claro que o compromisso é exclusivamente com a comédia. Se quiserem uma comédia a cair bastante para o trágico (das pequenas coisas, da vidinha, com personagens comoventes), vejam a excelentíssima The Rehearsal da HBO.