Peter Sloterdijk, Europa, um continente sem qualidades
/Peter Sloterdijk, o filósofo que melhor agita as águas, cada vez menos claras, do pensamento atual (em filosofia, o «atual» tem pelo menos um século), proferiu a lição inaugural do Collège de France neste último 4 de abril, o jornal francês Le Monde publicou um excerto que retomo, em modo de comentário, mais abaixo. É sobre a Europa, continente bem e mal-amado (ambivalência que faz parte da sua própria condição de possibilidade), cada vez menos capaz de corresponder às expectativas que ele próprio criou.
Sloterdijk é um autor bastante traduzido em Portugal (quase sempre na Relógio D’Água), aconselho, por exemplo, a Crítica da Razão Cínica (entre muito outros, Jürgen Habermas saudou-a efusivamente), Palácio de Cristal, Morte Aparente no Pensamento e Tens de Mudar de Vida. É verdade que, por enquanto, ainda nenhuma editora se atreveu a perder dinheiro traduzindo a sua opus magnum, Sphären (Esferas, três volumes, 2004 e 2009), mas o que há é suficiente para termos a clara noção da sua genialidade (na análise, no comentário e na poeisis conceptual). Mais clarividente e profundo, mais dentro, e fora, da história da filosofia do que Byung-Chul Han (a outra rockstar da filosofia alemã), pouco alienado ao anticapitalismo pós-extremista, como lhe chama, mais prolífico do que a maioria dos académicos e, já agora, incrivelmente livre (resistiu ao canto dos mandarins, alguns bons diga-se, da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt), apesar da carreira canónica na Hochschule für Gestaltung (Universidade das Artes e do Design de Karlsruhe, na qual chegou a ser reitor). Só ele se aproxima, porque sabe e não tem medo de se queimar, de uma gaia filosofia, que, longe do rigor mortis da filosofia analítica, assume a importância do conto filosófico (um eros discursivo que reconhece a necessidade de discursos longos e multiformes para explicar um presente complexo, ambíguo e pós racional).
«Nietzschiano de esquerda», como gosta de se apresentar quando quer inaugurar uma polémica, preferia que a dicotomia ética se baseasse no par «pesado e leve» em vez de o «bem e mal». Este último foi até hoje o motor incansável do pensar e do sentir humano, um transcendental, à sua maneira, com incríveis poderes performativos. Mas seria bem mais fértil distinguir o que torna a vida humana leve do que a torna pesada, as paixões felizes das paixões tristes. Construa-se, pois, uma nova ética a partir do que eleva e do que rebaixa, do que exulta e do que angustia e petrifica. Mas, claro, talvez o ser humano, que regressou aceleradamente às pulsões destrutivas (o fim da história só pode ser projetado num pós-humano, ou no fim do humano), não esteja ainda preparado para sair do conforto maniqueísta; como esclarece Sloterdijk, retomando Friedrich Nietzsche, aquilo que escolhemos (refere-se à filosofia, mas podemos usá-lo igualmente numa ética prática) «depende do homem que somos». (Temperamentos Filosóficos). E Sloterdijk é um homem permanentemente inspirado, sem os habituais preconceitos (bondosos, dizem) do intelectual engagé.
II
Na lição inaugural do prestigioso Collège de France, Peter Sloterdijk (namorando há muito com a França) falou sobre a Europa, esta em que vivemos, cheios de esperança e receio, gratos e ingratos por existirmos num palácio de cristal que já não consegue (alguma vez conseguiu?) ser a estufa perfeita que nos aquece mesmo quando um frio distópico atravessa alguns dos vidros partidos (ou ausentes, desde sempre).
Há uma certa amargura pela sensação de declínio europeu (somos o «velho mundo» desde Cristóvão Colombo), o «resto do mundo» mudou muito, já não é o «menos», mas o «mais». Não soubemos, não sabemos fazer a transição do colonialismo para o ensimesmamento continental, um continente fragmentado que ainda não conseguiu compor o seu corpo dançante. Assediados pelo distante e pelo próximo, temos, num paroxismo dissensual, uma Rússia que recuperou os instintos imperais que pareciam irrecuperáveis depois do malogro soviético. Mas temos também imigrantes, presentes e potenciais, a bater constantemente, esfomeados, à porta. E nós cheios de medo, numa angústia étnica sem precedentes. Somos, pois, um corpo, já não monstruoso, mas talvez frankensteinniano, vinte e sete órgãos sem uma cabeça que verdadeiramente os coordene. Como renovar, por outro lado, este continente sem colónias (e com poucos amigos), com uma história de domínio, político e espiritual, tão pesada? O passado em vez de trampolim forma um lastro de chumbo que nos impede de avançar (neste tempo seria antes «galgar»). Mas bem, somos os especialistas da decadência, sabemos, como ninguém, sublimá-la, fazemos, como Baudelaire ou Fernando Pessoa, poemas sobre o cansaço, a beleza metafísica da renúncia e do desvanecimento. Mas também a tememos tanto que estamos prontos a saltar para qualquer abismo se nos prometerem que nos afastamos dela.
Desta forma, diz Sloterdijk, quem ousar repensar a Europa «deve saber que haverá que formar conceitos para uma novidade política e cultural. […] conceitos para um continente sem qualidades» (próximo da ideia de ausência de qualidades do Ulrich de Robert Musil, não por falta de inteligência, pelo contrário, mas por um viés analítico que o conduzia à passividade, ao relativismo moral e à indiferença). Com 500 milhões de habitantes, refúgio para imigrantes porvir, clama por uma nova definição, para si e para os seus povos. A União Europeia é uma improvisação política, um grande corpo político sem «as convicções e postura imperiais». E se os seus habitantes assumem e, na sua maioria, validam este novo europeísmo, isso não os conduz às mesas de votos das eleições europeias. Talvez falte o sentimento de uma pátria vivida, ou talvez isso justifique alguma cólera contra a realidade opaca, quase extraterrestre, da burocracia das instituições europeias. Mas, no essencial, muitas incarnam uma ingratidão fácil e desmiolada: «O Europeu de hoje é frequentemente o consumidor final de um conforto do qual desconhece as condições de existência». Por isso, «na sua existência perfurada pelas falhas de memória» há uma frase de Stephen Deladus (no Ulisses de James Joyce) que se tornou realidade: «A história é um pesadelo do qual procuro sair.» Melhor, quem sabe, do que o «I would prefer not to» bartlebyano.
Talvez seja a altura de regressar à A Ideia de Europa de George Steiner, que nos reconforta com uma genealogia da civilização europeia sem nenhum lugar para o ressentimento. Mas assim perdemos o espetáculo de autodestruição que vai percorrendo, sempre percorreu, a Europa e o dever de a filosofia constituir, como pensava Nietzsche, a má consciência do seu tempo.