A Enfermaria 6 publicará brevemente um Caderno sobre “Modos de Escrever”, título que organiza, em diversidade, testemunhos e reflexões sobre linhas de escrita. Nele falarei acerca da “escrita de sangue” de Nietzsche, mas hoje quero retomar um tema que me assombra há vários anos: o modo de ler. Sabemos que há diferentes estilos de leitura, por vezes coabitando numa oposição benigna no mesmo leitor: ler a acta de um Conselho Administrativo ou a bula de um medicamento é bem diferente de ler um artigo de Pourquoi nous sommes nietzschéens. Bom, mas alguns dias atrás fiz pelo menos isso (recordo-me agora que li também, além de outras minudências, as instruções de uma fotocopiadora industrial e um pouco de Peter Sloterdijk – Aprés nous le déluge), e essa esquizofrenia hermenêutica não me tornou insano. Por outro lado, ninguém, alfabetizado, julga ler mal, o que justifica talvez o pouco que se reflecte sobre este comportamento. Seria interessante pedirmos às ciências cognitivas que nos ajudassem a compreender este acto de civilidade, marca indelével da cultura ocidental, forma superior de domesticação. Não podendo, para já, apelar a essa moda epistemológica, capaz, segundo dizem, de definir totalmente como conhece o ser humano, sugiro que leiamos Nietzsche a partir das suas próprias indicações. Bem sei que parece servilismo, mas verão que pode revelar-se uma boa linha hermenêutica. A isso acrescento, já no final do artigo, a indicação de um nietzschiano livre, Giorgio Colli, próxima de um vitalismo que o caminhante de Sils-Maria aceitaria com certeza.
A disparidade de que falei acima deve, porém, ser restringida quando lemos Nietzsche, é essa a minha experiência. Até um certo ponto influenciado, confesso-o, pelo que o próprio autor escreveu no §137 de “Opiniões e sentenças misturadas”, Coisas Humanas, Demasiado Humanas[1], onde assegura que os piores leitores são como piratas, roubam aqui e ali, uma ou outra coisa, consoante as suas necessidades, contaminando aquilo de que não precisam. E mais tarde, no Anticristo (§52): ler bem consiste em “saber decifrar factos sem os falsificar pela interpretação.”[2] Portanto, simplificando muito, um bom leitor fideliza-se a um texto e a um método. Claro que não se trata de uma monomania hermenêutica, o próprio Nietzsche leu diversamente, autores e temas, foi, aliás, bastante prolífico. Mas talvez ele quisesse, naquela obra da segunda juventude (quando se é quase sempre positivista), preparar futuras indicações sobre a sua recepção. Estranhamente, apesar de muito ter feito para se tornar incompreensível, ou pelo menos dificilmente compreensível, deixou inúmeras pistas hermenêuticas; ao mesmo tempo que intensificou um solipsismo vital, criou guiões para ser... compreendido. Nietzsche hesitou sempre, é bom dizê-lo, entre o desejo de ser compreendido e a consciência de que não o seria, ou, pior, de que seria mal compreendido (e mais uma vez teve razão). Simultaneamente, projectou-se como um autor póstumo, porventura a única forma de poder escrever com o entusiasmo e a veracidade patentes no seu último ano de vida mental sã (Anticristo, Crepúsculo dos Ídolos, Ecce Homo, os libelos contra Wagner e um conjunto inestimável de Fragmentos Póstumos). Aí dirigiu-se para o seu destino com a certeza de um sonâmbulo. Nietzsche cumpriu totalmente o seu pacto com o futuro: dinamitar a modernidade filosófica e política, assente nas ideias de verdade universal e nacionalismo identitário, ele, perspectivista, que sempre gostou do Sul e, apátrida, se sentia somente europeu.
De qualquer forma, legou-nos várias recomendações hermenêuticas respeitáveis, entre elas costuma destacar-se a do prefácio, §8, de Para a Genealogia da Moral: “Evidentemente, para praticar a leitura como arte é necessário algo que nos nossos dias foi absolutamente esquecido – e é por isto que é preciso tempo para que os meus livros sejam legíveis –, algo que exigiria quase que fôssemos da raça bovina, e não um ‘homem moderno’, é preciso saber ruminar...” Cerca de catorze anos antes, numa carta a Cosima Wagner para o Natal de 1872, compunha já intenções inspiradas na sua formação em filologia clássica: “O leitor de que espero alguma coisa deve ter três qualidades: necessita ser calmo e ler sem pressa. Não necessita introduzir-se constantemente entre as linhas e interpor a sua ‘cultura’.” Exige-se, então, um leitor objectivo, pesquisador mais do que criador de sentidos. É verdade que por vezes, ao longo de toda a sua obra, aconselha o livre arbítrio hermenêutico, mas a ideia de um leitor rigoroso, filológico manter-se-á.
Isto é muito mais do que uma simples metodologia, a hermenêutica incarna um ethos geral que perpassa por diferentes campos da existência. Tese clarificada no §256 de Para Além Bem e Mal, onde elege um “ritmo e uma lentidão aristocráticos” (vornehmen) contra os “trabalhadores desenfreados, quase se auto-dilacerando com o trabalho”. Um estilo de vida que é preciso educar, como nos indica no belo §334 da Gaia Ciência, onde a partir do exemplo do tempo longo necessário para aprender a gostar de uma melodia estranha, diz ser preciso paciência para amar e ser amado: “[…] Acabamos sempre por ser recompensados pela nossa boa-vontade, a nossa paciência, equidade, ternura para com o que é estranho, na medida em que essa estranheza despe lentamente o seu véu e se revela com uma nova e indizível beleza: – é a sua gratidão pela nossa hospitalidade. Também quem a si próprio se ama, tê-lo-á aprendido por esta via, não há outra. É preciso também aprender o amor [Auch die Liebe muss man lernen].”
Mas a condição da leitura lenta, ruminante, técnica e parcela de um ethos aristocrático (decidido na trilogia solidão, coragem e lucidez, em vez de numa qualquer herança classista), não é a única recomendação de Nietzsche. A par disto, é preciso audácia, curiosidade, desejo de experimentar: “Quando imagino a figura de um leitor perfeito, surge-me sempre um monstro de coragem e de curiosidade que, além disso, é também algo de maleável, astuto e previdente, um aventureiro e descobridor nato.” (Ecce Homo, “Porque escrevo livros tão bons”). No §32 de A Gaia Ciência acentua o carácter de combate hermenêutico quando refere que a sua “maneira de pensar exige uma alma belicosa, uma vontade de fazer sofrer, prazer em dizer não, uma pele dura”. Fazendo uma analogia com a materialidade da digestão, recurso metafórico abundantemente usado para explicar processos cognitivos, dedica, na edição de A Gaia Ciência de 1887 (“Scherz, List und Rache” §54), uma pequena rima ao leitor: “Bons dentes e um bom estômago – / É o que te desejo! / Se digeriste o meu livro / Certamente saberás entender-te comigo!” Há ainda outros guiões remetendo para uma materialização, uma vivificação da interpretação: sugere, por exemplo, que o leiamos enquanto andados, em voz alta, atendendo às sílabas rítmicas, respeitando as modulações, pregas do som, a complexidade fonética dos textos.
Para simplificar o ângulo de entrada em Nietzsche (mas é só a entrada) podemos ler o “Vorwort” do Anticristo, numa página resume bem, mantendo a recomendação do rigor filológico, os atributos do seu leitor: a) deve estar acima dos mexericos políticos e egoísmos da época; b) ser indiferente à utilidade da verdade; c) corajoso em relação ao que é proibido e labiríntico; d) ter ouvidos para a novidade, entusiasmo, respeito, amor-próprio e liberdade perante si. Atenção, liberdade e audácia. Apesar das recomendações, não há, pois, codificações categóricas, Nietzsche nunca quis discípulos em dedicação estéril. E preferirá sempre um leitor arrebatado a um burocrático, sobretudo aquele que esteja disponível para ser mudado pelo texto a esse outro que lê para confirmar velhas certezas ou acumular capital informativo.
É por isso que acompanho Giorgio Colli em Sritti su Nietzsche (Milano: Adelphi, 1980, p. 13): “Na realidade, não há nenhuma necessidade de interpretar Nietzsche, isto é, a que seja determinado conceptualmente segundo uma ou outra direcção, justamente porque a sua acção sobre a vida individual é directa. Basta acolhê-lo, não através de fragmentos ocasionais ou diversamente sugestivos, mas na totalidade e unidade que formam. Este caminho mais laborioso deverá privar Nietzsche de uma falsa popularidade. Em compensação, a sua acção – a que ele queria – manifestar-se-á pela primeira vez, e ninguém pode dizer se essa acção será salutar ou nociva.” Não sabemos, é verdade, mas creio que ao ler Nietzsche se adquire sempre um pouco de lucidez e de probidade, entendendo, como se um raio nos atravessasse, que o trágico pode ser radiante. Por outro lado, com ele resistimos melhor às consequências negativas do nosso cepticismo, nomeadamente os impasses que lastram a acção, e ficamos suficientemente livres para não nos tornarmos reféns de certas convicções.
[1] Prefiro traduzir assim Menschliches, Allzumenschliches (seguindo Filomena Molder), em vez do tradicional Humano, Demasiado Humano.
[2] É bem conhecido a afirmação de Nietzsche sobre não haver factos, apenas interpretações (Fragmento Póstumo de 1886-1887, 7[60]), mas as duas afirmações cabem bem no seu pensamento, os factos do Anticristo ligam-se a uma leitura filológica, enquanto os factos deste FP recusam a ideia de uma verdade universal e transcendente ao perspectivismo humano.