Microcosmos – Haikus
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“Faz o melhor que puderes e deixa para os deuses o que ficar por fazer.”
Yasunari Kawabata
1.
Numa folha de hortelã
a sede
da tua língua.
2.
Rosmaninho
inspiro fundo
a infância que resta.
3.
Ladram os cães
da vizinhança –
casas vazias.
4.
Não tem pressa
o Sol –
cantam os grilos.
5.
A sombra da rã
que salta
sobre o peixe vermelho.
6.
Arrefece o ar
coaxam as rãs
ao longe as rolas.
7.
Antes de ver
a minha sombra
esconde-se a lagartixa.
8.
Meu sangue
no toro de cerejeira
que racharei.
9.
“Caga no passado”
e limpa o cu
ao futuro.
10.
Aproxima-se uma tempestade
não interessa
está sol.
11.
Canta o cuco
lavram-se as terras
estou vivo.
12.
No campo lavrado
papoila solitária –
o teu sorriso.
13.
Pintam a primavera
os pássaros
a panela assobia.
14.
Que amanhecer
canta o galo
à hora do almoço?
15.
Na voz do irmão
ecoa
o amigo carpinteiro.
16.
No campo de rosmaninho
como o amor
secam os preservativos.
17.
Nos meus sonhos
tão vivo
quanto o sol depois da chuva.
18.
Dura mais um pente
que a juventude –
cabelos brancos.
19.
Brilha na couve
a gota de orvalho –
deixo a urina correr.
20.
Coaxam as rãs
ao sol –
amadurecem os figos.
21.
Pendura o hammock
meu pai –
figos verdes.
22.
No balde
ao lado do poço
a mesma água.
23.
As flores das favas
o canto do grilo –
anoitece.
24.
Sentado no banco
da feira
florescem as giestas.
25.
Regressa um rebanho
silenciam-se as rãs –
anoitece.
26.
Terra vermelha
a minha pele
ao sol no olival.
27.
Timidamente a rã
finge ignorar
a minha presença.
28.
Todas as promessas
de amor
o canto do grilo.
29.
Esvoaça um morcego
a rã salta
o grilo continua.
30.
Escovo a barba
sob o atento
olhar das rãs.
31.
Canta o cuco
toca o sino –
silêncio.
32.
Colhe cebolas
e alfaces a mãe –
aproxima-se o almoço.
33.
Estar assim
que as rãs
se aproximam.
34.
Sob o verde líquido
move-se rápida
uma pequena chama.
35.
Do outro lado
do muro
silêncio e vazio.
36.
Cantam os pássaros
as tardes
da minha infância.
37.
À beira do poço
não interessa
que passe a vida.
38.
Pequena célula
de um organismo maior –
nós.
39.
Sementes de nabo
levadas pelas formigas –
sementeira feita.
40.
Nada teme
o peixe
curioso.
41.
Na flor da fava
colhe o fruto
a abelha.
42.
A papoila
que agora colhi
já murchou.
43.
Arrefece lentamente
o café
do meu pai.
44.
Nunca só
no monte
agora menos.
45.
Sobre os milénios
do granito
décadas e o infinito.
46.
À sombra das algas
um peixe vermelho –
manhã de sol.
47.
O pai arranca
as couves velhas
e planta as novas.
48.
O sino interrompe
a declaração
da rã.
49.
Sob o olhar atento
das rãs
apanhamos sol.
50.
Na cadeira
o gato –
chuva de primavera.
51.
As vidas passaram
o rio
continua.
52.
Morango silvestre
maduro
sobre a língua.
53.
Espelho de água
o rio
nos meus olhos.
54.
Interminável mantra
de um grilo –
passo como um rio.
55.
Pedra sobre pedra
o muro
e a memória.
56.
À lareira
salada de agrião
treme o avô.
57.
É importante
perguntar
ao pó.
58.
Na manhã de sol
os chocalhos
das ovelhas.
59.
Flores de morango
quem comerá
o fruto?
60.
Urzes e carquejas
na flor da esteva
uma abelha.
61.
Olhos que vêem
as ruínas
que sabem das vidas?
62.
Cheiras-me ao monte
num dia quente
de primavera.
63.
A vinha do meu pai
à noite
é dos javalis.
64.
Sobre a figueira
cai a chuva
e o sol da manhã.
65.
Casa dos avós mortos
cai agora
o dente de leite.
66.
Revelado pelo sol
fino fio de teia –
manhã chuvosa.
67.
Amadurecem os figos
à chuva e ao sol –
manhã esmeralda.
68.
Café quente
à janela aberta
da manhã.
69.
Gentil chuva
de primavera –
o teu sorriso.
70.
A Lua não precisa
do meu olhar –
tenho que mijar.
71.
Sobre a ribeira
chuva –
papa-figos canta.
72.
Na língua
o sabor do café –
sol da manhã.
73.
Entre pesadas páginas
secam
as flores silvestres.
74.
Quieto na fraga
como uma árvore
ao sol.
75.
Na palma da mão
o mundo
rosmaninho e alecrim.
76.
Rosmaninho e alecrim
a frescura
dos teus lábios.
77.
Arrancando uma couve
meu pai –
“estás bem aí?”
78.
Neste trono de pedra
sou o rei
do alecrim.
79.
Sobre o canto das rãs
passa voando
uma andorinha.
80.
Minha mãe inquieta
meu pai triste –
onde para o gato?
81.
Dá horas
o sino –
“devia-se escachar.”
82.
Com sede
do teu corpo
bebo o sol.
83.
Sobre a lavanda
meu corpo o sol
e um caderno.
Abril-Maio 2021, Portugal (Torre de Dona Chama-Cidões)