Ulrich Seidl é apontado como um dos nomes fundadores da “nova vaga” austríaca, juntamente com Michael Haneke, Michael Glawogger e Nikolaus Geyrhalter. Antes de compor a sua, até então, mais ousada e surpreendente narrativa, Seidl já havia feito, dentre outros filmes, Amor Animal (Tierische Liebe, 1996), Dias de cão (Hundstage, 2001) e Import/Export (2007). Recentemente, apresentou-nos a sua Trilogia Paraíso. Amor (2012), Fé (2012) e Esperança (2013) narram as trajetórias de Teresa (Margarete Tiesel), Anna Maria (Maria Hofstätter) e Melanie (Melanie Lenz). Três filmes sobre três mulheres em busca de três figuras masculinas. Com esta trilogia, Seidl constrói um painel de uma sociedade, sem deixar de lado o seu humor tão característico. Pelo contrário: é ele, creio, que dá um tom palatável ao que muita gente considera frígido e metódico.
Nas praias do Quênia, as “sugar mamas”, como são conhecidas as mulheres europeias em turismo sexual, buscam rapazes africanos que vendem amor para ganhar a vida. Teresa viaja nas suas férias para uma paisagem, de fato, paradisíaca. Lá, no Quênia – e só no Quênia –, ela tem status e “amor”, um misto perigoso de ilusão, decepção e negócio oferecido por beach boys que só querem saber de dinheiro. Este é o Amor.
Anna Maria mora sozinha e divide o seu tempo entre o hospital, onde trabalha como enfermeira, e sua casa, metodicamente limpa. Mas Anna Maria não se sente sozinha. Anna Maria tem Jesus. Anna Maria adora Jesus. E este amor incondicional impele-a a rezar constantemente e a usar frequentemente todo tipo de autoflagelação. Como membro de um pequeno grupo ultra-religioso, ela procura trazer a fé católica de volta à Áustria. Para isso, bate de porta em porta, com sua imagem de Nossa Senhora, convidando os moradores, pobre vizinhança ocupada em sua maioria por imigrantes, a rezar e purificar suas casas. Mas sua paz, se assim a pudermos chamar, é totalmente desestabilizada quando seu marido muçulmano e aleijado volta para casa, precisando de cuidados e exigindo o amor que ela destina apenas a Jesus. Assim é a Fé.
Melanie vai para um campo de reeducação física e alimentar para adolescentes obesos enquanto a mãe está de férias no Quênia. Num internato onde tudo é rigorosamente controlado, Melanie segue buscando escapes. Em meio a conversas sobre sexo com as companheiras do campo e comidas roubadas, eis que surge o médico-residente do internato. Ela o seduz. Na verdade, tudo não passa de sucessivas e provocadoras tentativas. Talvez esteja aí a esperança do título, já que se trata de uma espera – ou de uma expectativa – e não de uma realização. E isso pode ter a ver tanto com o seu objetivo de transformar o seu corpo, seguindo um padrão atual de magreza, ou com a sua paixonite púbere pelo doutor (que também pode veladamente significar uma busca por uma figura paternal que não aparece em nenhum momento). O assédio derivado da queda pelo doutor justapõe a paixão clichê pelo homem maduro e a busca por uma figura masculina. Aqui, a meu ver, elas são a mesma coisa. E cá está a Esperança.
Em busca de uma felicidade, as três personagens esbarram em silenciosos moralismos de uma sociedade extremamente hipócrita. E Ulrich Seidl compõe quase pictoricamente três mulheres que mostram e ao mesmo tempo ironizam seus moralismos e suas hipocrisias. Uma linha tracejada une as vidas dessas três personagens. Enquanto mãe e filha são deslocadas (Melanie para um campo de dieta, Teresa em férias no Quênia), Anna Maria evangeliza por toda Viena.
O projeto original de Seidl era formado por um único filme que interligasse as três histórias. Mas o diretor acabou transformando-o numa trilogia em que cada filme focaliza uma personagem. Com este tríptico, Seidl compõem um ousado retrato da sociedade moderna – uma crítica que não se destina apenas à cultura de seu país, apesar de que, muitas vezes e em outros de seus filmes como Dias de cão, isso pode parecer causticamente direto. A forma impiedosa com que costuma disparar contra a sociedade torna-se aqui mais complexa mas não menos ácida. Amor, fé e esperança poderiam ser substituídos por carência, fanatismo e puerilidade, e funcionam como formas de auto-conhecimento, e, ao mesmo tempo, refúgios, evasão. Todas estas temáticas da superfície escondem, de fato, outras: como as pessoas se aproximam e se distanciam umas das outras, conectam-se e se desconectam, tentam trilhar seus próprios caminhos, mas não sabem bem como.
Ao colocar o espectador em seu mero lugar de espectador, Seidl expõe a realidade de um grupo de pessoas, descrevendo e reduzindo seus jogos de poder à sua essência imediata. Acusado de pintar com seu usual desapego um retrato desencantado da sociedade, percebo que é exatamente o contrário. Só um homem muito apaixonado pode oferecer um olhar aparentemente descrente, mas certamente sarcástico da realidade que o cerca. Vê e repara! É o primeiro passo para a mudança. Aliás, é esta – a mudança, a mudança nas relações interpessoais – creio, o grande tema por trás de todo o Paraíso