depois das lápides

o limite é lateral literal ou litoral já foi dito/ todos os outros estão coxos e você só sabe disso agora o que você veio fazer no clube ela diz que só está aqui para seu aniversário/ pediram champanhe e ainda parecem sedentos ele acabou de fazer trinta e tem má reputação anda por aí com essa triste reputação porque frequenta um clube de luta clandestino de porão/ depois que ele ganhar a rodada me encontra no banheiro/ eu sei que você está cansado de amar com ninguém para amar feche os olhos e deixe a palavra/ pintar mil fotos/ uma boa menina vale mais que mil cabras/ ninguém sabe o que ele realmente faz ele quer me sorver na pia e depois disso me dar algo para beber/ um passo para trás para obter coragem você lembra onde nos conhecemos/ o primeiro passo não há ninguém perfeito/ tenho o pior representante/ o natal se aproxima ela queria ver minha lista de desejos/ vou pedir a sua cabra para outras cabras/ talvez a gente ainda possa se ajoelhar nos degraus da igreja mas primeiro você deve lembrar como esquecer/ eu sei que você está cansado de amar com ninguém para amar/ basta pegar alguém pela mão/ não me deixe com ninguém para amar e cuidado com a boca/ Susana está em casa

[Perfil de Evelyn Blaut-Fernandes]

pondo as cartas na mesa

todos os truques de mágica consistem em três atos/ a primeira parte é chamada o sinal/ o mágico mostra um objeto/ um maço de cartas um pássaro ou um homem/ talvez peça para examiná-lo/ para provar que é real/ mas provavelmente não é/ a segunda parte chama-se a oportunidade/ o mágico pega a coisa inalterável e faz algo extraordinário/ agora você procura pelo segredo mas não encontrará porque você não está de fato procurando/ você não quer saber/ você quer ser enganado/ mas fazer algo desaparecer não é o suficiente/ você tem que trazê-lo de volta/ por isso todo truque de mágica tem o terceiro ato/ a parte mais difícil a parte que chamamos o prestígio/ mesmo para um engenheiro de ilusões às vezes algo sai errado  

tacked on his wings and laid his cards on the table

Patti Smith

queima de arquivo

minha avó tinha uma ilha/ nada para se vangloriar/ dava-se uma volta nela numa hora/ ainda assim era um paraíso/ um verão fizemos uma visita e descobrimos que o lugar estava infestado por ratos/ chegaram num barco de pesca e passaram a se alimentar de coco/ minha avó me ensinou como se livrar dos ratos de uma ilha/ enterramos um barril e o deixamos aberto/ depois colocamos um coco como isca/ os ratos foram em busca do coco e caíram no barril/ depois de um mês prendemos todos os ratos/ mas não jogamos o barril no oceano nem o queimamos/ deixamo-lo ali/ os ratos começaram a sentir fome/ e um a um passaram a se devorar/ até que só restaram dois/ os dois sobreviventes/ pegamos e os soltamos nas árvores/ mas agora eles não comem mais coco/ agora eles só comem ratos

 

[Ver perfil de Evelyn Blaut-Fernandes]

O paraíso segundo Ulrich Seidl

Ulrich Seidl é apontado como um dos nomes fundadores da “nova vaga” austríaca, juntamente com Michael Haneke, Michael Glawogger e Nikolaus Geyrhalter. Antes de compor a sua, até então, mais ousada e surpreendente narrativa, Seidl já havia feito, dentre outros filmes, Amor Animal (Tierische Liebe, 1996), Dias de cão (Hundstage, 2001) e Import/Export (2007). Recentemente, apresentou-nos a sua Trilogia Paraíso. Amor (2012), (2012) e Esperança (2013) narram as trajetórias de Teresa (Margarete Tiesel), Anna Maria (Maria Hofstätter) e Melanie (Melanie Lenz). Três filmes sobre três mulheres em busca de três figuras masculinas. Com esta trilogia, Seidl constrói um painel de uma sociedade, sem deixar de lado o seu humor tão característico. Pelo contrário: é ele, creio, que dá um tom palatável ao que muita gente considera frígido e metódico.

Nas praias do Quênia, as “sugar mamas”, como são conhecidas as mulheres europeias em turismo sexual, buscam rapazes africanos que vendem amor para ganhar a vida. Teresa viaja nas suas férias para uma paisagem, de fato, paradisíaca. Lá, no Quênia – e só no Quênia –, ela tem status e “amor”, um misto perigoso de ilusão, decepção e negócio oferecido por beach boys que só querem saber de dinheiro. Este é o Amor.

Anna Maria mora sozinha e divide o seu tempo entre o hospital, onde trabalha como enfermeira, e sua casa, metodicamente limpa. Mas Anna Maria não se sente sozinha. Anna Maria tem Jesus. Anna Maria adora Jesus. E este amor incondicional impele-a a rezar constantemente e a usar frequentemente todo tipo de autoflagelação. Como membro de um pequeno grupo ultra-religioso, ela procura trazer a fé católica de volta à Áustria. Para isso, bate de porta em porta, com sua imagem de Nossa Senhora, convidando os moradores, pobre vizinhança ocupada em sua maioria por imigrantes, a rezar e purificar suas casas. Mas sua paz, se assim a pudermos chamar, é totalmente desestabilizada quando seu marido muçulmano e aleijado volta para casa, precisando de cuidados e exigindo o amor que ela destina apenas a Jesus. Assim é a .

Melanie vai para um campo de reeducação física e alimentar para adolescentes obesos enquanto a mãe está de férias no Quênia. Num internato onde tudo é rigorosamente controlado, Melanie segue buscando escapes. Em meio a conversas sobre sexo com as companheiras do campo e comidas roubadas, eis que surge o médico-residente do internato. Ela o seduz. Na verdade, tudo não passa de sucessivas e provocadoras tentativas. Talvez esteja aí a esperança do título, já que se trata de uma espera – ou de uma expectativa – e não de uma realização. E isso pode ter a ver tanto com o seu objetivo de transformar o seu corpo, seguindo um padrão atual de magreza, ou com a sua paixonite púbere pelo doutor (que também pode veladamente significar uma busca por uma figura paternal que não aparece em nenhum momento). O assédio derivado da queda pelo doutor justapõe a paixão clichê pelo homem maduro e a busca por uma figura masculina. Aqui, a meu ver, elas são a mesma coisa. E cá está a Esperança.

Em busca de uma felicidade, as três personagens esbarram em silenciosos moralismos de uma sociedade extremamente hipócrita. E Ulrich Seidl compõe quase pictoricamente três mulheres que mostram e ao mesmo tempo ironizam seus moralismos e suas hipocrisias. Uma linha tracejada une as vidas dessas três personagens. Enquanto mãe e filha são deslocadas (Melanie para um campo de dieta, Teresa em férias no Quênia), Anna Maria evangeliza por toda Viena.

O projeto original de Seidl era formado por um único filme que interligasse as três histórias. Mas o diretor acabou transformando-o numa trilogia em que cada filme focaliza uma personagem. Com este tríptico, Seidl compõem um ousado retrato da sociedade moderna – uma crítica que não se destina apenas à cultura de seu país, apesar de que, muitas vezes e em outros de seus filmes como Dias de cão, isso pode parecer causticamente direto. A forma impiedosa com que costuma disparar contra a sociedade torna-se aqui mais complexa mas não menos ácida. Amor, e esperança poderiam ser substituídos por carência, fanatismo e puerilidade, e funcionam como formas de auto-conhecimento, e, ao mesmo tempo, refúgios, evasão. Todas estas temáticas da superfície escondem, de fato, outras: como as pessoas se aproximam e se distanciam umas das outras, conectam-se e se desconectam, tentam trilhar seus próprios caminhos, mas não sabem bem como.

Ao colocar o espectador em seu mero lugar de espectador, Seidl expõe a realidade de um grupo de pessoas, descrevendo e reduzindo seus jogos de poder à sua essência imediata. Acusado de pintar com seu usual desapego um retrato desencantado da sociedade, percebo que é exatamente o contrário. Só um homem muito apaixonado pode oferecer um olhar aparentemente descrente, mas certamente sarcástico da realidade que o cerca. Vê e repara! É o primeiro passo para a mudança. Aliás, é esta – a mudança, a mudança nas relações interpessoais – creio, o grande tema por trás de todo o Paraíso

Nereu J’uchuy Anqas tra(du)zido por Evelyn Blaut-Fernandes

do livro Antologia da poesia moche (no prelo)


 

o momento

e eles estão prontos ao rodarem como aves que se voltam para levitar no vento tudo é certeiro agora que desliza lado a lado pelo que invejo o jeito dos seus corpos para aguentar e prolongar a descida veloz opto pelo momento em que as suas escolhas coincidem e em equilíbrio no ar hesitam numa culminação que partilham com o mar observo dois surfistas a caminho das ondas as pranchas   flutuam ao lado e ao longo do lento declive da praia os joelhos e a cintura penetram naquele abraço elementar suspendo a escolha enquanto uma onda de milhentas se forma e se aproxima

 

a natureza

quando a meio caminho da derrota a mente leva iludindo e excedendo o lugar que ela advinha entre penumbras e profundezas as correntes de ar as ocultações em agosto esta brisa momentânea que primeiro atravessa depois se prolonga até sentirmos como um esse som de água que é som de folhas tudo isso em mesclas e agitações evoca os cursos por onde um poema flui pede a sua escrita em permanência não quietude mas pulsação e voz tantos tons e recantos preenchidos tantas pedras ocultas e escuridões diurnas sob as árvores nenhuma leitura simples revela por inteiro este variável texto um poema

 

a metamorfose

corre esta água imaginária mas enche também lagos e lameiros na base do vale alimentados a crer no que se vê pela mesma nascente e pela mesma corrente assim como o azul da água nem todo ele azul também se junta a tons de solo erva e caule quando o vento desalinha e o aparta de tal modo que a mente em confusão saudável num abandono dos seus poderes à ilusão poderia nadar em metamorfoses e crer que a água real se move como um fluir de flores pelo outeiro abaixo as campainhas azuis enchem o veio de um antigo regato que se eleva como se houvera água de novo onde flor a flor as campainhas correm no seu leito cada curva ou arroio cada fio afluente descoberto pelas flores e nem só na encosta

 

antes da dança

os rostos navajos têm a aridez da paisagem e o movimento com o vento do oriente e o movimento contra o vento do ocidente casam nas suas rugas aguardam sentados o momento no chão de terra falando pouco ou dormem como a mulher que encostada à parede vai escorregando para acordarem no clangor da pulsação do tempo com o primeiro tambor ainda não há dança e ninguém diz quando começa a espera para o índio é meia dança e assim esperam qualificando o momento pela recusa em medi-lo o momento é expansível arde e não se gasta sob a luz crua da sala da dança

 

a galeria das raposas

lembras-te da manhã em que te acordei aos gritos e o animal aproximava-se não de um lado para o outro mas em direção à casa e nós a nos esticarmos para ver mais o máximo que podíamos e então vimo-la desviar-se intimidada pela habitação e vimos quão totalmente os dois mundos eram díspares enquanto aquele perfeito ideograma da agilidade e liquefação fluía afastando-se de nós rítmico e oscilante e num fulgor final uma casa comprida a galeria das raposas assim tu chamaste ao andar superior porque de lá podias ver o caminho da raposa através do campo em frente e podias segui-lo de uma janela à outra o caminho da raposa a todo o comprimento do prado paralelo à linha restritiva de parede e umbral ou então podias seguir até aí o sentido daquele percurso sinuoso
 

o paraíso

para onde havemos de voltar quando alijarem esta insurreição de tristes tetos desespero também nos é dado não merecemos nem sua nem sua posse não há outra ponte senão o fio da paciência outra via senão a vontade de reaver o paraíso esta inclinação para resistir às persuasões de um vento que sem significado soa onde o seu sentido já cantou é uma luz de lugar tanto quanto o próprio lugar não uma face apenas a expressão na face a dádiva das formas configura colinas e pedras o vento empurra as nuvens para longe e as nuvens afastam-se desenredam-se esboçando uma saudação onde o espinho do cardo prende o manto sacudido e desfiado que ecoa o seu voo e o mesmo vento agita as linhas entrançadas do bosque as radiais avenidas de luz suficientes para com elas traçar uma cidade o paraíso é-nos dado e da clarividente dádiva somos privados no caminho para o paraíso estamos perdidos nas escassas ruas do nosso despojamento

 

a porta noturna

na colina noturna no céu claro ali se enquadra a tua cabeça que se move apenas e acompanha o céu como uma nuvem entrevista entre ramas ri nos olhos a estranheza de um céu que não é o teu a colina de terra e de folhas encerra com a sua massa negra teu vivo olhar tua boca tem a ruga de uma doce cavidade entre as costas distantes parece jogar com a grande colina e a luz do céu para me agradar repete esse marco antigo e o entrega mais puro mas tu vives em outro lugar o teu sangue terno foi feito em outro lugar as palavras que dizes não correspondem com a áspera tristeza deste céu não és mais que uma nuvem dulcíssima branca presa a uma noite entre ramas antigas

 

o tempo

só o sol e a lua poderiam ouvir longamente essa canção pelos milênios do nosso silêncio mas o sol e a lua têm em comum com outros deuses e apenas nós que inventamos os deuses mas não o sol e a lua ouvimos a orla e a origem em suas falas sem palavras ouvimos o espaço gerando o tempo uma vez mais nas cadências e cordilheiras dessa cor lá está Pachacutec e também os pintassilgos a cantar o taki matinal colorindo o tempo ensaiando mais uma vez em torrente e gota em cachoeira e aerófono esses séculos anteriores a chegarem aqui onde vieram para medir e calcular tudo em função dos próprios fins agora voltamos com os pintassilgos para sermos até antes de sermos e vamos demorar