Nereu J’uchuy Anqas tra(du)zido por Evelyn Blaut-Fernandes

do livro Antologia da poesia moche (no prelo)


 

o momento

e eles estão prontos ao rodarem como aves que se voltam para levitar no vento tudo é certeiro agora que desliza lado a lado pelo que invejo o jeito dos seus corpos para aguentar e prolongar a descida veloz opto pelo momento em que as suas escolhas coincidem e em equilíbrio no ar hesitam numa culminação que partilham com o mar observo dois surfistas a caminho das ondas as pranchas   flutuam ao lado e ao longo do lento declive da praia os joelhos e a cintura penetram naquele abraço elementar suspendo a escolha enquanto uma onda de milhentas se forma e se aproxima

 

a natureza

quando a meio caminho da derrota a mente leva iludindo e excedendo o lugar que ela advinha entre penumbras e profundezas as correntes de ar as ocultações em agosto esta brisa momentânea que primeiro atravessa depois se prolonga até sentirmos como um esse som de água que é som de folhas tudo isso em mesclas e agitações evoca os cursos por onde um poema flui pede a sua escrita em permanência não quietude mas pulsação e voz tantos tons e recantos preenchidos tantas pedras ocultas e escuridões diurnas sob as árvores nenhuma leitura simples revela por inteiro este variável texto um poema

 

a metamorfose

corre esta água imaginária mas enche também lagos e lameiros na base do vale alimentados a crer no que se vê pela mesma nascente e pela mesma corrente assim como o azul da água nem todo ele azul também se junta a tons de solo erva e caule quando o vento desalinha e o aparta de tal modo que a mente em confusão saudável num abandono dos seus poderes à ilusão poderia nadar em metamorfoses e crer que a água real se move como um fluir de flores pelo outeiro abaixo as campainhas azuis enchem o veio de um antigo regato que se eleva como se houvera água de novo onde flor a flor as campainhas correm no seu leito cada curva ou arroio cada fio afluente descoberto pelas flores e nem só na encosta

 

antes da dança

os rostos navajos têm a aridez da paisagem e o movimento com o vento do oriente e o movimento contra o vento do ocidente casam nas suas rugas aguardam sentados o momento no chão de terra falando pouco ou dormem como a mulher que encostada à parede vai escorregando para acordarem no clangor da pulsação do tempo com o primeiro tambor ainda não há dança e ninguém diz quando começa a espera para o índio é meia dança e assim esperam qualificando o momento pela recusa em medi-lo o momento é expansível arde e não se gasta sob a luz crua da sala da dança

 

a galeria das raposas

lembras-te da manhã em que te acordei aos gritos e o animal aproximava-se não de um lado para o outro mas em direção à casa e nós a nos esticarmos para ver mais o máximo que podíamos e então vimo-la desviar-se intimidada pela habitação e vimos quão totalmente os dois mundos eram díspares enquanto aquele perfeito ideograma da agilidade e liquefação fluía afastando-se de nós rítmico e oscilante e num fulgor final uma casa comprida a galeria das raposas assim tu chamaste ao andar superior porque de lá podias ver o caminho da raposa através do campo em frente e podias segui-lo de uma janela à outra o caminho da raposa a todo o comprimento do prado paralelo à linha restritiva de parede e umbral ou então podias seguir até aí o sentido daquele percurso sinuoso
 

o paraíso

para onde havemos de voltar quando alijarem esta insurreição de tristes tetos desespero também nos é dado não merecemos nem sua nem sua posse não há outra ponte senão o fio da paciência outra via senão a vontade de reaver o paraíso esta inclinação para resistir às persuasões de um vento que sem significado soa onde o seu sentido já cantou é uma luz de lugar tanto quanto o próprio lugar não uma face apenas a expressão na face a dádiva das formas configura colinas e pedras o vento empurra as nuvens para longe e as nuvens afastam-se desenredam-se esboçando uma saudação onde o espinho do cardo prende o manto sacudido e desfiado que ecoa o seu voo e o mesmo vento agita as linhas entrançadas do bosque as radiais avenidas de luz suficientes para com elas traçar uma cidade o paraíso é-nos dado e da clarividente dádiva somos privados no caminho para o paraíso estamos perdidos nas escassas ruas do nosso despojamento

 

a porta noturna

na colina noturna no céu claro ali se enquadra a tua cabeça que se move apenas e acompanha o céu como uma nuvem entrevista entre ramas ri nos olhos a estranheza de um céu que não é o teu a colina de terra e de folhas encerra com a sua massa negra teu vivo olhar tua boca tem a ruga de uma doce cavidade entre as costas distantes parece jogar com a grande colina e a luz do céu para me agradar repete esse marco antigo e o entrega mais puro mas tu vives em outro lugar o teu sangue terno foi feito em outro lugar as palavras que dizes não correspondem com a áspera tristeza deste céu não és mais que uma nuvem dulcíssima branca presa a uma noite entre ramas antigas

 

o tempo

só o sol e a lua poderiam ouvir longamente essa canção pelos milênios do nosso silêncio mas o sol e a lua têm em comum com outros deuses e apenas nós que inventamos os deuses mas não o sol e a lua ouvimos a orla e a origem em suas falas sem palavras ouvimos o espaço gerando o tempo uma vez mais nas cadências e cordilheiras dessa cor lá está Pachacutec e também os pintassilgos a cantar o taki matinal colorindo o tempo ensaiando mais uma vez em torrente e gota em cachoeira e aerófono esses séculos anteriores a chegarem aqui onde vieram para medir e calcular tudo em função dos próprios fins agora voltamos com os pintassilgos para sermos até antes de sermos e vamos demorar