Godzilla Minus One

GODZILLA MINUS ONE de Takashi Yamazaki (2023), filme da Toho produzido no quadro da celebração dos 70 anos do primeiro GODZILLA de Ishiro Honda (1954), é uma obra bem interessante e por várias razões (está mesmo prevista uma versão a preto e branco do filme - num gesto semelhante ao de Zack Snyder com LIGA DE JUSTIÇA - para este mês). Antes de mais, pelo modo como se inscreve na tradição nacional da cultura e do cinema de guerra (mas também do imediato pós-guerra com a ocupação americana) - aspecto bem patente no modo como respeita a questão da "honra" (que trabalha o personagem do piloto kamikaze, Shikishima) ou a da solidariedade de grupo (entre ex-combatentes mas também, num registo mais melodramático, entre pessoas que não se conhecem - a família obra das circunstâncias- ou vizinhos /Sumiko/)-, fazendo-o para, no quadro do seu "isolacionismo" de base, popular (manifesto na descrença em relação aos poderes, americano ou japonês), dar a volta à situação, mudando a "cultura de morte" (de que tanto se aproveitou o militarismo dos anos de guerra) numa "cultura (colectiva) de vida" (de que um dos exemplos é o pormenor acrescentado da cadeira ejectável do avião usado por Shikishima no combate final com o monstro). Um "isolacionismo" que deve ser também pensado em função da defesa de um modo de produção e de cinema (artesanal) nacional. Interssa-nos mais, contudo, a problemática da IMAGEM no filme e em particular esse "artefacto" (construção, monumento) que é Godzilla - aqui, como em certa medida já no GODZILLA de Gareth Edwards (2014), talvez pela sua proximidade, por assim dizer "telúrica", com o mito -, um monstro VIVO, com uma "persona" própria (por isso é saudado pelos marinheiros quando julgam té-lo afundado, abatido) e que incorpora em si (algo, aliás, típico das versões nipónicas) a HISTÓRIA (neste caso a radioactividade que lhe muda o corpo e faz dele uma "bomba" nuclear). Ao contrário dos Godzillas americanos , este é uma figura não seca mas HÚMIDA (encrespado como uma ilha, na sua dimensão vulcânica, o seu elemento, de que constantemente sai, é a água) mas também não empedernida ( reificada e parada numa fase arqueológica da sua forma e fantasma) mas ORGÂNICA, mutante (veja-se a sua "regeneração" molecular no fim). o "clou" do filme, claro, é a luta final entre a pequena armada "cidadã" (como é dito) e o monstro numa longa sequência tratada como um bailado (desenhado pela coordenação do movimento dos barcos e o de Godzilla) que envolve todos os elementos: a terra, a água e o fogo corporizados na criatura mas ainda o ar onde evolui, noutra dança sincronizada com os navios, avião de Shikishima. Assim, Godzilla é a "figura" não só de uma concepção de Imagem de cinema (uma imagem amálgama, sincrética, áspera e não resolvida, de vários componentes) como de cinema - um cinema metamórfico, terreno, que vai buscar substância imagética e fantasmática à própria matéria, convulsa, dos elementos da natureza). Como é que escrevia Breton em L'AMOUR FOU, referindo-se às imagens matéricas, construções heterogéneas de elementos pobres, de Man Ray? "A beleza será convulsiva /explosiva-fixa, mágico-circunstancial/ ou não será"

Senna de Asif Kapadia, 2010

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No seu lado mais pernicioso, há qualquer coisa na ideia de génio que ressoa com aquelas impressões equivocadas de meritocracia que postulam que o génio pode bater toda e qualquer condição adversa. Parece-me, no entanto, que os primeiros génios coincidem de alguma maneira com os primeiros heróis da épica grega, uma mistura de inspiração sem limites, habilidades perfeitas e uma certa tendência para o melodrama. Talvez mais do que uma extraordinária capacidade de raciocínio que pode ser aplicada a qualquer coisa (Leonardo da Vinci talvez seja o paradigma deste tipo de génio), o génio seja qualquer coisa que melhor se vê numa muito particular forma de especialização, alguém que encontra uma arte qualquer e que a pode praticar até à perfeição. Ayrton Senna é muito provavelmente este tipo de génio, embora ele, ao que parece, não acreditasse em ídolos, mas, como ele diz numa entrevista algures, em trabalho, dedicação e competência, e talvez seja esta a definição do génio de Senna.

Asif Kapadia é um realizador britânico que aparentemente não tem qualquer interesse em Fórmula 1. Eu também não, mas Senna, datado de 2010, é um documentário fascinante, em parte por causa da personalidade magnética de Ayrton Senna, em parte porque é um estudo sobre a beleza de que as pessoas são capazes quando se dá essa feliz coincidência, que não é para ser tomada por garantida, entre encontrarem algo que amam fazer e poderem fazê-lo, e nesse sentido é um filme sobre amar estar vivo. Há na figura de Senna, como retratada por Asif Kapadia, qualquer coisa da tragédia de Aquiles: uma vida breve, uma consciência de que é muito pouco o tempo que ele tem para poder deixar a sua marca na arena em que escolheu combater, uma nemesis formidável que é um Alain Prost/ Heitor, e todos os Agamémnons da vida, que são os empresários que ditavam as leis da Fórmula 1, a angústia constante de poder falhar e de preferir a efemeridade a uma vida longa onde as suas fantásticas habilidades ficariam sem expressão. Há um ponto no documentário em que Senna aparece a dizer: “As scared as I was to continue, I was just not ready to give in. It was my dream, my life, my passion.” Que talvez não seja tanto uma admissão das condições sine qua non para estar vivo, mas sobre uma espécie de coragem moral exemplar, sem a qual não se pode amar perfeitamente o facto de estar vivo.

Comizi d'Amore de Pier Paolo Pasolini

1965 foi o ano da estreia do documentário Comizi d’Amore de Pier Paolo Pasolini. A ideia de Pasolini era bastante simples: ir com um microfone, pela Itália fora, a perguntar às pessoas, de todos os quadrantes sociais, com mais ou menos educação, jovens e velhas, como viam elas a sexualidade, o casamento, a homossexualidade, as diferenças entre gerações no que à sexualidade se refere. Porquê ver esta documentário de Pasolini em 2018? Porque nos faz pensar no que mudou e no que se mantém actual e porque é uma espécie de fresco da humanidade. Há uma primeira cena em que Pasolini pergunta a um grupo de crianças de onde chegam os bebés que contém das sequências mais hilariantes que alguma vez vi num documentário. Há um pai de família e um jovem que se pegam sobre o significado social do casamento e as prioridades que este involve. Moravia e Musatti fazem o papel de comentadores (espécie de consciências socráticas, de resto) para as conclusões a que Pasolini tenta chegar. Há um longo monólogo de Moravia, acerca do debate, então vigente em Itália, de a homossexualidade ser ou não uma aberração, a que Moravia responde com qualquer coisa como: o medo do desconhecido, a ignorância, a nossa própria infelicidade levam-nos a julgar que podemos tentar oprimir os outros, reduzindo-os aos nossos julgamentos mais limitados e essa é a aberração. Filmado em 1965, disponível por completo no YouTube (ver abaixo), Comizi d’Amore continua a ser um documentário um pouco desconhecido na filmografia de Pasolini, mas uma das alegrias do género. Há espaço para rir, chorar, e muita candura pelo meio. Fica a nota. Boa semana.