Dois poemas de Frederico Klumb

No fim ficou dito que não havia passado ou presente.
Eu lia Borges apenas pela segunda vez na vida,
mas lia como alguém que tivesse apanhado muito
e logo depois encontrado uma cama.
Fico pensando se não é mais certo que um livro
seja como sentir frio e dormir assim mesmo.
Talvez, dormir com frio depois de um espancamento.
Estou lendo Borges pela segunda vez na vida.
Bem no início do livro ele fala de um poema
que demorou séculos para ser escrito e ainda não foi concluído.
O poema vai em sonho de tempos em tempos
para as cabeças de um e de outro.
Penso que é como se Borges estivesse dizendo
que não existe presente ou passado.
Ver e lembrar é a cabeça pensando.
É como se Borges estivesse dizendo
que a distância entre a imagem que chega no olho
e o ponto no cérebro que interpreta essa imagem
é a mesma percorrida quando lembramos qualquer coisa,
mas com direções diferentes.
Talvez eu não esteja lendo Borges pela segunda vez na vida.

. .

 

Ando descobrindo o tamanho dos meus dedos
através do que não me é permitido tocar agora.
Assim também vão meus dias, acumulam-se
detrás de quinas, no espaço entre uma coisa e outra,
como se ditassem com muita calma e em silêncio,
para uma criança agitada por chegar no mundo,
cada letra do nome que vai receber no batismo.
A mãe poderia explicar ao filho: é pra isso que lhe servirá
saber dizer a palavra caminhãozinho em voz alta
quando sentir falta dos teus brinquedos.
E pela mesma razão terá de aprender o nome
dos teus pais e daquilo que decidir amar.
Era isso então viver? Olhar as coisas com as mãos
e saber as medidas, os nomes que lhes damos,
quando elas não estão no mesmo espaço que os dedos?
Espero sem pressa, nos livros e na minha janela.
Ando construindo uma cadeira.

Autores convidados em Outubro

Frederico Klumb

Frederico Klumb é um escritor, poeta e cineasta brasileiro, nascido no Rio de Janeiro em 1990. Publicou, entre outros, os volumes ‘máquinas mancas da manhã’ (Edições Garupa), ‘Almanaque rebolado’ (Azougue, Cozinha Experimental e Edições Garupa) e ‘bichos contra a vontade’ (7letras).

Um pouco de seu trabalho em vídeo pode ser visto em sua página pessoal no Vimeo: vimeo.com/user43080611

Tonia Tzirita Zacharatou

Tonia Tzirita Zacharatou nasceu em Creta. Presentemente vive em Tessalónica, onde trabalha no seu projecto de doutoramento. Estes são os seus primeiros passos para fora do quarto.

Carta sobre "cinema circular" de Frederico Klumb

 

Fred, mano,

na segunda eu terminei de ler o seu cinema circular. você ter encasquetado, ido pro quarto de noite e ficado trabalhando numa plaquete em casa que na mesma noite já era uma plaquete impressa, feita, com selo - "transferidaça", que é um baita nome - capa, dois tipos de papel, achei tudo isso uma loucura bonita, foda. no mesmo dia ou depois de ter comprado a plaquete, não lembro, fui pra internet olhar preço de impressora, olhar guilhotina, me deu vontade de transformar o escritório num cacete de uma gráfica e aí ninguém seguraria a gente. esbarrei nos preços mas continuo animado. isso foi de uma vitalidade imensa. a gente fermentando livros na madrugada, quase clandestinos, eu imaginando aqui que seu livro tá pronto há bastante tempo e não sai e você resolveu publicar outro, um novo, na calada da noite. isso foi bonito, me encheu de orgulho e de suingue, coragem, nó na garganta também porque tenho ficado frouxo esses dias. nada mais acertado dizer que o verso de um dos primeiros poemas do cinema, "todos os dias há alguém parindo a noite". e é legal isso ter vindo de você, que é notívago, talvez não por opção, mas por circunstância agora. acho que uma hora isso muda. não quero que deixe de amar a noite. eu amo. mas desconfio que logo você vai estar esse trem bala de dia também.
e depois vem um "o sol esquenta as penas", com a referência ao Gullar do "Galo galo", mas autônomo, porque realmente as penas são infinitas e aquecer o coração delas é importante. ah, dá uma olhada na p.16, tomara que faça outras tiragens, tem um “do olhos”, que acho que devia ser “dos olhos”, e talvez, agora não tenho certeza, um “a terra” em que cabe crase se eu tiver entendido direito. você se vendo no gato e terminando o texto com desespero por conta de um cachorro que está alto, "o cachorro está alto" é a frase, isso é uma joia, e a conversa entrecortada dessa e da outra prosa da plaquete, a primeira uma conversa desconfiada, a segunda um sonho, mostram uma vontade nossa de contar, de narrar, que eu imaginei que viria, e veio. no seu caso é justo porque já vem do roteiro pra cinema antes, mas a prosa é incontornável. eu também devo ir pra cima dela se deixar de chororô um dia.
vi o Ítalo do seu "moro do rio" que fecha um dos haiku, no seguinte achei bonito um aprendizado do sono que você foi caçar nas traças, é legal ir vendo o poeta e a pessoa dentro do texto, sei que pena pra dormir às vezes. como é doce o livro. é doce. doce como o sergio uma vez me disse que o chacal era doce, doce como quando a gente tá triste mas começa a achar as coisas bonitas mesmo estando triste, doce como o Gagarin do Eucanaã. bonito, doce.
o último poema antes da terceira parte foi o que mais me chamou atenção na primeira lida, acho que pela semelhança de traquejo, mas também porque, pensando agora, a noite que vinha até aqui sendo a noite doce, do trabalho, da criação, da invenção da própria noite a cada noite, muda de figura. a noite que você vinha armando era a noite divina, uma que só existe se empenharmos trabalho e fé, como se ela precisasse ser fabricada pelos fiéis. agora não, a noite vem como Saturno, no último poema da segunda parte aparecem os pastores de ovelhas e o canto deles que sei que te encantou num filme, que filme era mesmo? e os bichos se substanciam naquilo que os mata, passam a ser feitos de lâmpadas. o céu é imenso, os pastores menores, as ovelhas ainda menores, os bichos que batem a cabeça nas lâmpadas no verão menores ainda e o poema ganha a proporção que precisa para falar das abelhas que a noite engole. a noite imensa, voltando à proporção do céu que inicia o poema, se indigna a ir comer as abelhas. e come porque são dela: eu as faço, eu as como. concordam a noite e saturno num "mundo irremediavelmente aceso". e aceso pra contrastar com o breu da noite e da morte, mas também pra lembrar dos holofotes da guerra do Pasolini no tantas vezes retomado texto dos vagalumes, eles também tão pequenos e arriscando serem comidos pelos holofotes num mundo claro e branco e aceso que nos tem cegado e nos cega.
quando vem a prosa que na prática fecha círculo do cinema circular, a gente larga tudo, já que é um sonho, larga a noite, os bichos, e vai pra uma cena arquétipo. como pode algo ser tão signo de uma comunidade como uma jangada com casais e seus bebês carregando um oráculo pelo mar. o oráculo é jovem e gordo e grita "miracolo! miracolo!", como num Fellini, o som estourado e algo espantoso que só espanta o espectador. 
o absurdo permanece comum para quem o fabrica. deve ser isso. queria ver isso desenhado. essa jangada com o miracolo.

Um abraço, obrigado por mais essa.


Heyk
21 de março de 2018.