Festa da aldeia

Nas ruas batiam-se em latas, davam-se pinotes, cantava-se, dançava-se, tudo se entretinha enquanto a noite clara clamava surdamente por um pouco de sossego. Eu juntei-me à pândega pois não tinha sítio algum para onde ir nem pessoa alguma a quem agradar. Fiz um furor tremendo com as minhas danças modernas que ninguém conhecia, e olhei as estrelas rodopiantes enquanto eu próprio rodopiava sobre o meu corpo que rodopiava tonto pelo chão dançante. Agarrei uma menina pequena para dançar e no espaço de uma dança ela fez-se senhora, e nós casámos, e tivemos até filhos, enquanto durou a festarola. Nunca percebi porque o tempo não passava por mim, e ainda não percebo mas isso é porque ele ainda não passa. E eu por cá me desencontro de mim. O estranho não é continuar uma criança após tantos anos, o estranho é ser este tipo de criança que fui até há poucos instantes. O ter ganho asas também não é de estranhar, é uma consequência natural da vida. Explodiram foguetes numa miríade de cores e a noite ficou ainda mais clara, tanto que julguei que a festa estava no fim, mas afinal tinha apenas começado. Tudo tinha começado. Pensei, onde me sentia bem, realmente bem, era no meu berço, embalado pela voz da minha mãe, pela mão do meu pai, e pela angústia da vida, que me havia perfilhado. A pândega ainda continua, tudo dança ainda, mas eu recolhi-me no canto mais escondido da aldeia, e assim sigo vivendo, rodopiante pela minha vida afora esperando que a festa termine para eu enfim descansar...

António Marinheiro

António Marinheiro sempre fôra António, mas não consta que em momento algum houvesse sido marinheiro. Assim era conhecido e já nem o próprio se recordava de onde saíra tal epíteto. Gostava de mergulhar no mar de quando em vez, nem sequer muitas vezes, de sentir o corpo envolto em água fria, resistir ao esmagamento que ela provocava e regressar são e salvo à tona como um verdadeiro herói. E isto foi o máximo de contacto que manteve com o mar. Também numa ou noutra ocasião cruzou o rio de cacilheiro mas enjoou em todas elas e de nenhuma guardou boa lembrança. Contudo, gostava de ser tratado assim, António o Marinheiro.

As manhãs, passava-as tentando recordar as façanhas da infância e juventude, mas nada havia para recordar e portanto criava façanhas na sua cabeça, façanhas medonhas, por vezes, de tão inventadas, sendo que há hora do almoço já o seu orgulho transbordava do corpo de tão imenso. A fraca figura ajudava a transbordar mais rapidamente.

Num dia de Maio anormalmente chuvoso, decidira comer uma refeição decente pois recordava-se do prazer que o havia inundado das poucas vezes em que isso sucedera. Pensou no restaurante do velho amigo Alberto que, em certa ocasião, não demasiado longínqua, aparentemente fôra simpático para si: além duma boa refeição ainda aproveitou um casaco um pouco gasto e de mangas demasiado curtas, mas que em si assentava que era um primor. Só precisava agora de recuperar a coragem de outrora já que tudo o resto havia de sobra, incluindo a fome. Arrastou os pés até à porta do restaurante cujo nome “A Caravela” lhe soava a ironia, deteve-se alguns instantes até que a dita coragem o pegou pela mão e o fez entrar. O ruído era muito, não que o da rua a que estava habituado fosse menor, mas ali estava mais concentrado e distraía-o do seu propósito. As mesas estavam quase todas ocupadas, e eram imensas, apenas uma situada ao fundo da sala junto a uma das janelas se encontrava vazia. Os empregados moviam-se de uma tal maneira urgente e disparatada que acabava por se tornar divertido observá-los.

Ah!, Alberto acabava de sair da copa em tom apressado. António Marinheiro tentou fazer-se notar levantando a mão e agitando-a no ar freneticamente, mas acabou por não ser visto apesar de Alberto, segundo lhe pareceu, ter olhado para si momentaneamente, foi essa a sensação com que ficou. Ao invés, dirigiu-se a dois cavalheiros que haviam entrado logo a seguir. Cumprimentou-os com reverência e sentou-os na mesa vazia junto à janela. Foi uma decisão muito sensata e compreensível, pensou, pois os fatos que vestiam eram realmente bonitos e limpos. Não haver mais lugares sentados não foi caso para o impedir de voltar a levantar mão na direcção do amigo Alberto e acená-la mais uma vez, mas a convicção era de facto inferior. Lá se agitava no ar a sua mãozinha encardida mas não havia maneira de ser visto até que acabou por desistir. Baixou-a pesarosamente e foi quando um dos empregados, pelo menos vestia-se como um empregado, o empurrou porta fora com maus modos.

António o Marinheiro ficou sem saber como agir. Já não chovia; o sol reinava agora num céu completo de azul como se as nuvens se houvessem esgotado. Errou algum tempo pela cidade até que uma forte dor o obrigou a sentar-se no chão encostado à parede dum prédio. Colocou as mãos sobre o peito que subia e descia cada vez mais pesada e dolorosamente. O sol aquecia-lhe o estreito rosto moreno. Nos seus últimos instantes recordou-se sorrindo das alegrias de infância, assim como das façanhas de juventude, ainda que não houvesse nenhumas para recordar.