António Marinheiro
/António Marinheiro sempre fôra António, mas não consta que em momento algum houvesse sido marinheiro. Assim era conhecido e já nem o próprio se recordava de onde saíra tal epíteto. Gostava de mergulhar no mar de quando em vez, nem sequer muitas vezes, de sentir o corpo envolto em água fria, resistir ao esmagamento que ela provocava e regressar são e salvo à tona como um verdadeiro herói. E isto foi o máximo de contacto que manteve com o mar. Também numa ou noutra ocasião cruzou o rio de cacilheiro mas enjoou em todas elas e de nenhuma guardou boa lembrança. Contudo, gostava de ser tratado assim, António o Marinheiro.
As manhãs, passava-as tentando recordar as façanhas da infância e juventude, mas nada havia para recordar e portanto criava façanhas na sua cabeça, façanhas medonhas, por vezes, de tão inventadas, sendo que há hora do almoço já o seu orgulho transbordava do corpo de tão imenso. A fraca figura ajudava a transbordar mais rapidamente.
Num dia de Maio anormalmente chuvoso, decidira comer uma refeição decente pois recordava-se do prazer que o havia inundado das poucas vezes em que isso sucedera. Pensou no restaurante do velho amigo Alberto que, em certa ocasião, não demasiado longínqua, aparentemente fôra simpático para si: além duma boa refeição ainda aproveitou um casaco um pouco gasto e de mangas demasiado curtas, mas que em si assentava que era um primor. Só precisava agora de recuperar a coragem de outrora já que tudo o resto havia de sobra, incluindo a fome. Arrastou os pés até à porta do restaurante cujo nome “A Caravela” lhe soava a ironia, deteve-se alguns instantes até que a dita coragem o pegou pela mão e o fez entrar. O ruído era muito, não que o da rua a que estava habituado fosse menor, mas ali estava mais concentrado e distraía-o do seu propósito. As mesas estavam quase todas ocupadas, e eram imensas, apenas uma situada ao fundo da sala junto a uma das janelas se encontrava vazia. Os empregados moviam-se de uma tal maneira urgente e disparatada que acabava por se tornar divertido observá-los.
Ah!, Alberto acabava de sair da copa em tom apressado. António Marinheiro tentou fazer-se notar levantando a mão e agitando-a no ar freneticamente, mas acabou por não ser visto apesar de Alberto, segundo lhe pareceu, ter olhado para si momentaneamente, foi essa a sensação com que ficou. Ao invés, dirigiu-se a dois cavalheiros que haviam entrado logo a seguir. Cumprimentou-os com reverência e sentou-os na mesa vazia junto à janela. Foi uma decisão muito sensata e compreensível, pensou, pois os fatos que vestiam eram realmente bonitos e limpos. Não haver mais lugares sentados não foi caso para o impedir de voltar a levantar mão na direcção do amigo Alberto e acená-la mais uma vez, mas a convicção era de facto inferior. Lá se agitava no ar a sua mãozinha encardida mas não havia maneira de ser visto até que acabou por desistir. Baixou-a pesarosamente e foi quando um dos empregados, pelo menos vestia-se como um empregado, o empurrou porta fora com maus modos.
António o Marinheiro ficou sem saber como agir. Já não chovia; o sol reinava agora num céu completo de azul como se as nuvens se houvessem esgotado. Errou algum tempo pela cidade até que uma forte dor o obrigou a sentar-se no chão encostado à parede dum prédio. Colocou as mãos sobre o peito que subia e descia cada vez mais pesada e dolorosamente. O sol aquecia-lhe o estreito rosto moreno. Nos seus últimos instantes recordou-se sorrindo das alegrias de infância, assim como das façanhas de juventude, ainda que não houvesse nenhumas para recordar.