Gerações

Já era hoje quando vi a luz brilhar no canto escuro
E recebi de fora hóspedes sisudos
A preocupação de ontem indicava se frutas maduras
Devem estar sobre o pano rendado ou
Se minha laranjeira pernoitaria para sempre
Ao fundo da casa
Meu pai, admirador das laranjas, por sua cor e acidez,
Devorava quietamente o sumo
Apalavrava os mandamentos numa voadeira de gominhos
Às vezes o pegava usando os dedos, as unhas – o olho cerrado –
E balançando a cabeça em gestos laterais
Para livrar os brotos presos aos dentes

Sabia que uma mesa bem posta comporta frutas maduras sobre o pano rendado
E o ácido das laranjas do meu quintal é verdadeiro remédio
Para a sisudez das visitas
Estimulei nesses dias de casa cheia
Conversas e sabedorias diante de meu quintal, embaixo da laranjeira,
E as laranjas passaram a ser a tônica dos diálogos.
Especificamos os tipos e variedades da fruta, sua forma circular e
Como lembravam a redoma dos nossos conflitos
O céu aberto da antiga propriedade
Os fluxos em que corria o tempo num jogo veloz de máximo e mínimo
Como ao mordê-la o paladar cítrico impulsionava um estado de alteração nos olhos

Até em meus sonhos as laranjas se achegavam
Enroscadas na cesta fiada pela mãe
Ela advertia que as colheitas aparecem primeiramente na utopia do sono
Indicando as imagens como ferramentas de velhos oráculos
Ainda que aos oráculos o tempo não manifestasse agora
O encanto da idade virgem
O sumo fresco e a estranha novidade
E que as imagens se rebelaram
Evadiram das pontas dos cajados para viverem
Incongruentes na dormência da carne.

As laranjas de meu quintal envelheceram
Acinzentaram
Dizem que seu lado interno é morno
E quando caem ao pé já lá estão
Ficam

E meu pai também já está ao chão
Sob ele
Sem laranjas em sua boca de algodão
Forçando de punhos cerrados a talha de madeira que
O cobriu, abafou-o

As reuniões cessaram quando a laranjeira do quintal
Emitiu seu último urro
E a sua única folha seca cobriu o caderno do meu filho
Meu filho que guarda agora meu pai
Minha mãe nos meus sonhos
Meu filho nas minhas pernas
Meu filho
Filho, elevando seu dedo menino e a língua
Língua para fora, escanteada.

Ainda vou ao quintal
Visito o que sobrou da laranjeira
Um tronco opaco, doente de memórias
Carrego cheio de dor meus pés fracos
E a alma benta pesada
Estou num silêncio absoluto e
Atravessado pelo sopro da noite

As luzes da casa dormindo
Meu filho serenando
E eu sigo pelo quintal
Trajando nudez e cisma
Em busca dos sinais de minha mãe
De cascas envelhecidas, de sementes cítricas
Das utopias, mãe! Das utopias!
Algo deixado por meu pai
Um pelo de sua pele talvez
Uma pele
Pele
Bastava uma pele, um urro
Urro seu, pai
Urro seu, mãe
Meu filho urra
Como o vento urra
Como dentro de mim, água revolta, urra a saudade
Saudade, pai
Saudade, mãe
Pai! Mae! Meu filho tem saudades de mim.

Três poemas de Marcus Vinicius

 

Doutrina

Ascende-me, Pai
Sou moço luterano faz uma eternidade
Vendado em quatro cantos mudos: - Ai!
Como disfarço a dor e os estalos da maldade.

 

De tarde

Eu vi o poeta da parede
Interna da pele,
Sossegado, costurar o chá no bule
Matar num gole a sede.

 

A bailarina da janela

Desapareceu na luz branca
Não viu os prédios, não ouviu o trânsito
Na floresta, decidiu ser silenciosa.