Do corpo: poema na pele
Todas as noites liam poesia
há muito que o sexo se gastara
e o amor era afinal
uma palavra de vidro dentro de um livro
Bebiam chá quente contra o gelo do corpo
esfregando cada poema na pele
como se remédio fosse
à procura de alguma seiva
Alguns ossos foram ficando fora do sítio
e agora apenas se tocavam
para cortarem a carne na dobra do papel
antes de se deitarem lado a lado
Ao ler poesia todas as noites
sentiam a mesma sensação de outrora
a mesma sensação de quase prazer e de impotência
Do corpo: poema ao pescoço
E uma madrugada acordamos
com um poema ao pescoço
apertando cada vez mais
Já quase sem respirar
levam-nos para uma sala branca
e abrem-nos a cabeça
como se remédio fosse
Remexem e voltam a remexer
mudando os ossos de sítio
mudando a memória de sítio
e até a infância que fomos deixando crescer
Desfazem quase tudo mesmo antes da morte
e do corpo lançado à terra
com um poema ao pescoço que ninguém reparou
Somente as palavras resistirão
mais duram os versos que o vidro
e mais ainda cortam
Do corpo: poema às costas
Depois daquele poema
depois daquele verso
ficamos logo condenados
É já demasiado tarde para outro destino
que não o de carregar a ruína às costas
tentando cerrar os olhos e a cabeça
como se remédio fosse
Vai-se aprendendo o melhor que se pode
a caminhar sobre o vidro
e a esticar nele certas imagens pesadas
Por vezes acontece partirem-se alguns ossos
na travessia de algumas palavras
ao ponto de ficarmos invertebrados e imóveis
Mas mais depressa se cura um osso que um poema
essa carne viva fora do sítio