Memória

Poema de Natalia Ginzburg
(Originalmente publicado em Dezembro de 1944 na revista Mercurio)
Tradução de Hugo Miguel Santos

Os homens vão e vêm pelas ruas da cidade.
Compram comida, jornais, dirigem-se às mais diversas empresas.
Têm rosados os rostos, os lábios cheios e vívidos.
Levantaste o lençol para ver o seu rosto,
baixaste-te para beijá-lo, num gesto corriqueiro.
Mas era a última vez. Era o mesmo rosto de sempre,
mas um pouco mais cansado. Era o mesmo vestido de sempre.
E os mesmos sapatos. E as mãos eram as mesmas mãos
que partiam o pão e serviam o vinho.
Hoje à medida que o tempo passa ainda levantas
o lençol para ver o seu rosto uma última vez.
Quando caminhas pela rua, ninguém te acompanha,
e quando tens medo, ninguém te dá a mão.
E não é a tua rua, nem é a tua cidade.
Não é tua a cidade iluminada: a cidade iluminada é dos outros,
dos homens que vão e vêm comprando comida e jornais.
Podes aproximar-te devagar da janela quieta,
observar em silêncio o jardim na escuridão.
Dantes quando choravas havia a sua voz serena;
e quando te rias lá estava o seu delicado riso. 
Mas esse portão que se abria à noite está fechado para sempre;
e deserta ficará a tua juventude, o fogo apagado, a casa vazia.


Memoria

Gli uomini vanno e vengono per le strade della città.
Comprano cibo e giornali, muovono a imprese diverse.
Hanno roseo il viso, le labbra vivide e piene.
Sollevasti il lenzuolo per guardare il suo viso,
ti chinasti a baciarlo con un gesto consueto.
Ma era l’ultima volta. Era il viso consueto,
solo un poco più stanco. E il vestito era quello di sempre.
E le scarpe eran quelle di sempre. E le mani erano quelle
che spezzavano il pane e versavano il vino.
Oggi ancora nel tempo che passa sollevi il lenzuolo
a guardare il suo viso per l’ultima volta.
Se cammini per strada, nessuno ti è accanto,
se hai paura, nessuno ti prende la mano.
E non è tua la strada, non è tua la città.
Non è tua la città illuminata: la città illuminata è degli altri,
degli uomini che vanno e vengono comprando cibi e giornali.
Puoi affacciarti un poco alla quieta finestra,
e guardare in silenzio il giardino nel buio.
Allora quando piangevi c’era la sua voce serena;
e allora quando ridevi c’era il suo riso sommesso.
Ma il cancello che a sera s’apriva resterà chiuso per sempre;
e deserta è la tua giovinezza, spento il fuoco, vuota la casa.

Os sapatos

Natalia Ginzburg, numa fotografia de Leonardo Cendamo em que não está a usar sapatilhas.

Natalia Ginzburg, numa fotografia de Leonardo Cendamo em que não está a usar sapatilhas.

Os sapatos são quase uma colecção de boas e más ideias. São também a memória de por onde andaram, a interrogação acerca de onde ainda podem ir. Reparo que os meus sapatos são sobretudo de ténis. Não sei porquê. Gosto de sapatos de ténis e gosto de sapatos que, não sendo sapatos de ténis, se parecem com sapatos de ténis. Qualquer coisa nos sapatos de ténis é sobre conforto e desadequação, imaturidade e perpétuo movimento.

Pergunto-me com que sapatos se terá apanhado Dante naquele bosque no meio do caminho da vida. Pergunto-me isto porque um dia na apresentação de um livro ou num colóquio qualquer, lá pelos inícios da segunda juventude, fiquei sentada ao lado do Vasco Graça Moura e reparei que ele estava a usar um par de ténis brancos (eram de lona ou não? não me lembro). Acho que foi isso que materializou para mim a noção de que os ténis podiam ser objectos de intelectuais.

Tenho dois pares de sapatos literários favoritos, mas não são talvez os que se imagina. Um desses pares é o que é mencionado no início de Conversazione in Sicilia de Elio Vittorini, um livro sobre anos violentos em Itália, quando os fascistas tomaram o poder. Lemos, nas primeiras páginas, que o narrador não tinha vontade de procurar ou de falar com ninguém, que se esquecia da vida e que os seus sapatos se enchiam de água. Penso que os sapatos a encherem-se de água são símbolo do desconforto, da pesada incerteza – abstractos furores, como lhe chama o narrador –, que paira sobre o princípio do romance e que traduzem a parálise de um tempo de medo, sem direcção aparente. São talvez a prefiguração de um afogamento.

Os outros sapatos literários que admiro e me comovem são também italianos e vagamente do mesmo período. São mencionados no ensaio “Le Scarpe Rotte” de Natalia Ginzburg. Esse texto foi escrito em Roma, no Outono de 1945, e está coligido em Le Picolle Virtù. Eis o primeiro parágrafo:

Io ho le scarpe rotte e l'amica con la quale vivo in questo momento ha le scarpe rotte anche lei. Stando insieme parliamo spesso di scarpe. Se le parlo del tempo in cui sarò una vecchia scrittrice famosa, lei subito mi chiede: «Che scarpe avrai?» Allora le dico che avrò delle scarpe di camoscio verde, con una gran fibbia d'oro da un lato. 

Este é um texto típico dos temas e do estilo de Natalia Ginzburg. As personagens são ao mesmo tempo melancólicas e divertidas (como ela própria dizia que as suas personagens eram sempre). Fala-se de sapatos para falar de hábitos, de família (os sapatos de família são sólidos e sãos), para caracterizar a escassez e a pobreza geradas pela guerra, para falar de cuidado e de amizade. Na descrição da degradação e persistência dos sapatos que as duas mulheres usam há uma metáfora de sobrevivência, nem assim tão bem escondida, que no fim do ensaio se concretiza na forma como Ginzburg acaba a imaginar que tipo de sapatos os filhos dela hão-de usar.

Este tipo de descrição, que se demora nos pormenores exteriores e que apenas indirectamente se torna caracterização psicológica, é outra marca do estilo de Ginzburg. As suas descrições mantêm sempre um afastamento objectivo, uma distância onde se vão acumulando e juntando coisas até que incisivamente se revela algum pormenor agudo e inescapável sobre aquilo que ela está a descrever, qualquer coisa que emerge como uma verdade necessária – isto vê-se, por exemplo, na descrição minuciosa das várias expressões do léxico com que o pai fala com os filhos em Léxico Familiar ou nas digressões existencialistas com que Cenzo Rena descreve as outras personagens em Todos os Nossos Ontens.

Esta técnica de acumulação às vezes passa a método para nos deixar entender uma personagem vista de todos os ângulos possíveis. Isto acontece, por exemplo, com Alessandro Manzoni, em A Família Manzoni. O escritor de I Promessi Sposi é uma figura tão imensa que Natalia Ginzburg só o consegue abarcar através da descrição de todas as personagens que o rodearam: pai, mãe, filhos, netos, genros,... e mesmo assim temos a impressão que nunca chegamos a entender Alessandro Manzoni.

Esta caracterização objectiva e cumulativa, tensa, aparece de um modo muito comovente na descrição de Cesare Pavese (de quem ela contava que uma vez ele lhe disse: “pára de ter filhos e põe-te mas é a escrever”) e do marido, Gabriele Baldini, nos ensaios “Rittrato d’un amico” e “Lui e Io,” respectivamente, ambos coligidos em Le Picolle Virtù.

Sobre Gabriele Baldini, em “Lui e Io,” Natalia Ginzburg nota que ele raramente comprava sapatos, embora tivesse um número gigante de camisas e gravatas. Diverte-me esta observação minuciosa, quase tanto quanto outra, que aparece noutro ensaio no mesmo livro, sobre Inglaterra, em que ela diz que os sapatos que se veem nas montras das sapatarias londrinas fazem mal aos pés só de olharmos para eles. Tento lembrar-me dos primeiros sapatos que comprei em Inglaterra e se eram desconfortáveis, mas do que me lembro melhor nesse ensaio é daquela frase, de uma certeza que me perturba, em que Natalia Ginzburg escreve que Inglaterra é um país que não muda as pessoas, que elas se tornam mais o que são, ou permanecem as mesmas. Penso que isto não é verdade, ou que entra noutra discussão, que me aborrece um pouco, sobre se alguém pode mudar de facto ou não. Eu creio que sim e fica implícito que Natalia Ginzburg também, exceptuando que o que as mudaria não seria Inglaterra.

Suspeito que os primeiros sapatos que comprei em Inglaterra não eram nada desconfortáveis, porque penso que talvez tenham sido um par de Camper que duraram pouco, ou menos do que eu tinha esperado, arruinados pela chuva inglesa e por umas intermináveis caminhadas numa Paris igualmente chuvosa. Não sei que sapatos lhes sucederam. Não sei se foi aí que entraram em cena umas botas de couro, com ar de sapatilhas, leves, aparentemente não muito resistentes, fabricadas no Porto, mas compradas algures numa tarde de dilúvio em Londres. Não sei bem, mas quase que duraram para sempre, e entristece-me que estejam agora muito arruinadas. Houve uma vez em que um sapateiro inglês as declarou um caso perdido, numa altura em que quis substituir-lhes as solas demasiado gastas em vez de as deitar fora. No entanto, um sapateiro megalomaníaco de Lisboa tornou a trazê-las à vida.

As ideias erradas que tenho sobre a capacidade de resistência dos sapatos aos dilúvios e às longas caminhadas dão sinal da má-fé que mantenho perante a aceitação dos limites naturais das coisas, e talvez denunciem um certo espírito lírico, ao mesmo tempo melancólico e cómico, quanto às possibilidades deixadas em aberto por todos os caminhos que serão percorridos por sapatos que ainda estão por vir.

 

Oxford, 11 de Outubro de 2021

Leonard Cohen, fotografado por Dominique Isserman nos Jardins du Luxemburgo, talvez em 1981 ou 1984, a acender um fósforo na sola dA Bota.

Leonard Cohen, fotografado por Dominique Isserman nos Jardins du Luxemburgo, talvez em 1981 ou 1984, a acender um fósforo na sola dA Bota.