3 poemas de 'Prata' de José Pedro Moreira

desabar de pontes
derrames nas pernas
desalinho do cabelo com toques de prata
ela
Gugu
ainda que coxa
é um bosque cego
à espera
de uma faúlha

triciclos esquecidos no quintal
oxidados
as rodas rangem
se as tentas mover no seu eixo

em frente
sempre em frente
Gugu
até no nosso
velho triciclo
para lá de conserto
o progresso
é inevitável


Gugu
a casa abate-se
tudo cai em nosso redor
lá se vai o candeeiro da vovó
o relógio de cuco do vovô
o sótão
com todos
os caixões lá arrumados
os quartos das crianças
a possibilidade
de haver crianças
ao menos agora
sabemos com o que contar
só tu e eu
Gugu
ao menos agora
podemos
dormir em paz
achas que voltarão agora
os lobisomens
com os seus
corações de prata
os beijinhos retorcidos
as jogatanas de cartas
levadas até à nudez?

eles têm
as suas mulheres
os seus trabalhos
os seus homens
e está certo
todos precisamos
de distracções
se estivéssemos atentos
víamos o carro
a atropelar o veado
e o veado
somos nós
e de nada vale a ternura
apelos filiais
a probabilidade
de estarmos em falência
em luto constante
excepto
nos dias de festa
nos dias de festa
queimamos ateus


sim
finalmente
por demais óbvia
a espessura da tinta

negra

o pássaro
também ele negro
bebe da taça
onde repousa
a nossa canetinha

contemplamos
o espectáculo

a primeira
das crias
que o gatinho trouxe
estava morta
mas a segunda
vivia ainda
pouco depois
o corpo
imóvel e frio
nada a fazer
o corpo no saco
como mais
um pedaço de lixo
não reciclável


José Pedro Moreira, Prata, Flan de Tal, Setembro de 2022

[Gugu]

Gugu
não podemos dizer
que há nisto
grande verdade
no jogo
de pergunta e resposta
na descoberta
de onde
ir a seguir

as bússolas morais
foram descontinuadas
imperam as forças de mercado
demasiado dispendiosas
não é possível delegar
a prestadores de serviços externos
e depois
matéria não reciclável
aquelas agulhinhas de prata
tomos e tomos
de tratados morais
séculos de humanidade

a esperança
como nos demais
assuntos do espírito
recai na tecnologia
um GPS moral
um algoritmo que dite
o que há a ser feito
quantos e quais
os que devem morrer
que prenda dar à vovó
pelo Natal
quem e como amar
entretanto Gugu
nós podemos sonhar
um futuro mais simples
e fazer o possível
com a nossa canetinha

perdidos
numa tempestade de barulho

como se seguíssemos
um fiozinho de prata
que brilha no escuro
e passamos
pelo Minotauro
mas o Minotauro
está ocupado
a jogar
World of Warcraft

[chega de desculpas]

chega de desculpas
Gugu
estamos
para lá
de redenção

diz Séneca
grande é o homem
que trata
o que é de barro
como se fosse de prata
e não menos grande
é aquele
que trata
o que é de prata
como se fosse de barro
mas nós
que somos de barro
que felicidade
podemos achar na prata
a consolação dos derrotados?

debatemo-nos toda a noite
Gugu
certame aceso
aguardas
as labaredas da verdade
mas só
quando a manhã chega
é que vês
que as ferramentas
que usas
para medir as coisas
estão descalibradas
as palavras
estão tortas
as metáforas
instrumentos
de opressão
agora é claro para nós
Gugu
que as palavras
assentam
em assimetrias
estão a um ângulo da verdade
mas é difícil de ver
de que lado
o ângulo agudo
e por isso embelezamos
para não mentir descaradamente
mentimos discretamente

estabelecemos relações
entre objectos
a distâncias indeterminadas
das nossas mãos
e julgamo-nos sábios
e ficamos contentes
o nosso prémiozinho
de consolação
medalha de prata
funil na cabeça