Breve ensaio sobre a chegada
/1.
A terra crestada está ali em frente
com as últimas ondas que rosnam
e insistem em seu imprevisível gesto.
Logo o porto se alarga
como goela de animal ferino
e essa pátria ainda sem palavras
abre suas fauces para nós
incrédulos
tomados pelo medo do rapto.
2.
Tanta vida gasta até essa linha
até essas pedras lisas:
Europa, vejo teu rosto limpo
e largo,
no meio da bonança
enquanto o animal ainda está adormecido
então torço com todas as forças:
oxalá a borrasca que sabemos
sempre próxima
a explosão da língua inimiga
não passe de uma ranhura
no assoalho, o estranho esgar
do vento no telhado.
3.
Para essa terra de abandono
migramos,
carregando o que sobra
do despojo:
nosso rosto virado
rumo ao sol,
rebojo de poeira e vento
na seca
e uma flor, pelo menos,
pelo menos uma flor
aberta apesar da fome
- aquela, que nos sobrevive
e demora
4.
Entre os trilhos para Ventimiglia
vejo um corredor de ruínas:
ferrugem, chicória e ervas daninhas
os prédios rachados
- áridos, quase cactos
pela maresia
nesse limbo entre duas terras
há uma calça estilhaçada
e um sapato solitário
deitado, como corpo violado
são as relíquias de outra guerra
onde a bomba é o carimbo
e o míssil é a fronteira imaginária
mais adiante
o tesouro saqueado:
a mala aberta
como boca desdentada
a pátria portátil jaz no trilho
logo o trem se moveu na estação,
a mala foi ficando pequena
e longínqua, debaixo do sol cortante
não foi possível ver
o que brilhava dentro dela
- um alfinete
talvez algum pente de nácar:
aquele brilho insólito
que enfrenta as dunas do deserto
- um profeta no meio da devastação.