Rui Cóias, "Duas canções póstumas para Paul Celan"


1. Canção de Brzezinka (1)




Leite negro da madrugada bebemo-lo ao entardecer
bebemo-lo ao meio-dia e pela manhã bebemo-lo de noite
bebemos e bebemos

Paul Celan


Onde vieres também tu a sussurrar 
nas valas, nem que faminta esteja a tua voz
e se teus olhos os vir de madrugada, 
perdidos pelos campos, em sítios que estremecem, eu regresso, «eu
até nas ondas do meio-dia, na linha calma das cerejas, 
se te vejo, Margarete, eu «escureço, e escureço
como o cabelo com o tom escuro dos violinos me escurece, 
como escurece o vento nos bosques frios 
em que morremos, escurecem as alamedas
escurece o leite negro que bebemos e bebemos. 

Onde vieres também tu pelo adordo sublime 
do infortúnio, nem que franzido seja o teu sangue
e se teus lábios os vir ao entardecer, 
à hora mágica, lendo os poemas da Galícia, eu regresso, «eu 
até nos comboios que cavam um túmulo pelos ares, 
se te vejo, Sulamith, eu «escureço, e escureço
como o entardecer nas horas mais pequenas me escurece, 
como escurecem as rugas pelos rostos
ardendo sombriamente, escurecem os poemas
escurece o leite negro que bebemos e bebemos.


2. Canção da Carélia (2)



Leslie, a morte, a quem sorrindo beijas o tornozelo 

Paul Celan 


Leslie, a morte, a quem sorrindo beijas o tornozelo, 
quem diria ser a namorada ensaiando na fronteira
a dança lenta, à aura que burila nos loendros,
quem diria que a coroa ela deslaçasse, seduzindo-nos, 
quando com ela baila o rancho, o rancho da Carélia. 

Roseira que desabrocha ao coro de vozes da Carélia,
vem à tardinha insinuar-se na sebe e recitar as suas rimas, 
que ora na volta adejam, ora a chorar bem querem,
p’los arraiais brandidas em travessas de madeira. 

Quem diria Leslie que ao seu beijo o refrão entoasse
e a grinalda o tornozelo afagasse aos viandantes,
tu que a folia adornas batendo um contra outro os pés, 
que o estalajadeiro baixinho repete em brincadeira. 

Mais hora menos hora não haverá noite na Carélia, 
aziaga noite em que ambos passeamos solitários,
à beira de outra lâmina que oscila no moinho,
à beira da vigília mentirosa sobre o dia. 

Cautela pois mocinha andante da fronteira,
tem cautela que o sol esplende se sorris — «e se a brisa no 
prado a vês passar — a vês passar — olha
como ela já dança — dança — agora, Leslie,
tu com madeixas em vagas luminescentes, agora, Leslie.» 






(1) In Brzezinka, ou Birkenwald, na Silesia, Polónia, o sentimento que assola o observador vazio, ao avançar por desvios ou trilhos, para lá das folhagens do bosque, ou nas cercas arborizadas que o aproximam de um ponto em que se cruza com um terreno, um baldio, com tempos individuais num fluxo de segundos, cada pequeno elo entre mulheres e crianças deitadas no catre, cada olhar — que se supõe conter os salmos, os cantos populares, holandeses, russos, húngaros, polacos — exprime, mais ainda que a funesta existência real que o rodeia, o contraponto quase metafísico, referido por Kertész, com que fazemos tentativas para pontuar vínculos desconhecidos e funestos, traçando inclusive os olhos que distinguiram nas bétulas a claridade das estrelas, o vento numa certa permanência ou a linha fantasmagórica do azul-celeste da noite nos gradeamentos de jasmim. 




(2) (Carélia) Não se sabe ao certo em que raízes profundas têm início os fragmentos que espelham as reflexões que diante de nós recuam, como não se sabe de onde provém o estrépito do machado que ecoa nas florestas do sul da Kareliya, como não é claro poder saber quando pisamos sem dúvida a fronteira que funde as aldeias e os pinheiros bravos da Finlândia e da Rússia no caminho certo ou no caminho escolhido, como não é discer- nível, nem imaginável, saber onde começa ou acaba o Ocidente, onde começam ou cedem as ligações entre o pensamento e o seu destino, onde se levantam as faúlhas da vida que pousam na morte, e as da morte que transcendem a retaguarda da vida, onde se ouvem os coros da ortodoxia e do cristianismo, onde se iniciam os salmos e terminam as canções populares, onde está de facto reservada a lembrança da nossa existência.

Três poemas de Mana Al-Sheikh em tradução de Rui Cóias

A iraquiana Manal Al-Sheikh nasceu em Nínive, en 1971. É licenciada em Tradução pela Faculdade de Artes da Universidade de Mosul. Tem trabalhado na imprensa árabe como jornalista freelance, e publicado artigos e textos literários em revistas e jornais iraquianos, árabes e europeus. Para além dos romances As Portas da noite de Antioquía (Damasco 2010) e Alteração de Túmulos (Nínive Unión de Autores Iraquís, 1996), as suas obras de poesia intitulam-se Gralla – Arquivo amoroso (Athar, KSA 2015), Antes de que morra o mar, Poemas escolhidos (Bagdad 2013) e Cartas Impossíveis (Amman 2010).

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Traduções a partir de versões inglesas por Rui Cóias



 

MANAL AL-SHEIKH

 

 

 

 

-       لا زهور تنمو فوق اسمي 

عندما أموت

لا يهم أين سأُدفن

ففي العراق لا تنمو الزهور

وهنا؛

ما من عابر سبيل

يمرّ مصادفة

يضعُ وردة ًعلى اسمٍ

.لم يعد يذكرهُ لسانكَ

 

No flowers grow on my name

 

I do not care where I am buried
When I die
In Iraq no flowers grow
And here …
No straying traveller
Will leave a flower on a name
You no longer pronounce.

  

Nenhuma flor cresce em meu nome

 

Eu não me importo onde estou sepultado
Quando eu morrer
No Iraque não despontarão mais flores
E aqui …
Ninguém que passe sem destino
Deixará um flor sobre um nome
Que tu jamais dirás.  

 

 

تهويدة لمحارب صغير

-عندما تموت لن ينعاك أحد غيري..

لن أنشر اسمك ولا صورتك ولا كفنك الذي سأتولى تزيينه

هي أغنية سأغنيها فقط

وستعرف العصافير في السماء

أنكَ صرتَ لها.

 

-كان الموتُ قريباً منك جداً هذه المرة

قريباً جداً،

للدرجة التي التقط فيها صورةً معك

باتسامة أخيرة

لعدسة الحياة.

 

 

- المدينة التي انجبت صرختي الأولى..

انجبتكَ أنت ايضاً

لكنك لم تعلُ مثل صرختي

وبقيت روحكَ معلّقة

بين الشكّ واليقين

في قلبي.

 

 

 

- خرجت من بيت عامر بأشجار البرتقال

وخرجتُ من بيت دفن آخر نخلة

في ذكراه

لم نلتق يوما على الرصيف ذاته

لكننا تصادمنا كثيراً

في تقاطعات نينوى.. 

حتى ظن الحرس بنا

السوء.

 

-       في زاوية ما امرأة تنتظرك

 في كل مدينة وبلدة 

أنثى ترسم دائرة حول مبسمك

كي لا تتوه.

في كل حي تمشط بنت شعرها

بأسنان غيابك

وتتحاشى العويل

 

-       لم انتظر محارباً يوماً

رغم مقارعتي لحروب ثلاث وهزائم كثيرة

كنتٓ كل مساء تسرق من الليل نجمة

لتكون دليلك إلي

من اغتال عين الليل يومها؟



 

A lullaby for a little warrior

 

          — No one will mourn your death but me
I won’t reveal your name,
or your photo or even your coffin
which I am going to decorate
I will sing a song which tells the flying birds that you’ve become theirs. 

          — Death was too close this time
Too close to take a photo of you smiling for the last time
to life’s lens. 

          — The city that gave life to my first cry
Gave you life, too
But your soul couldn’t fly as high as my cry
It dwelt in a limbo inside my heart. 

          — You came out of a house bursting with orange trees
I came out of a house which buried the last palm tree
in his memory
We’d never been at the same roadside
Yet, our meetings at Nineveh’s crossroads upset the guards. 

          — Somewhere a woman awaits you
Everywhere a female encircles your mouth to stop you going astray
In each neighborhood a girl draws the comb of your absence through her hair
And shuns wailing. 

          — I have been through three wars and many defeats
But I have never awaited a warrior
Each evening you used to steal a star to find your way to me 
Who murdered the star that night?

  

 

Balada para um pequeno guerreiro

 

          — Ninguém vai lamentar a tua morte a não ser eu
Eu não vou revelar o teu nome,
ou o teu retrato ou mesmo o teu caixão
que eu vou ornamentar
Eu vou entoar uma canção dizendo aos pássaros que tu te tornaste um deles.  

           — A morte estava desta vez muito próxima
Demasiado próxima para tirar o teu retrato sorrindo uma última vez
para a lente da vida. 

          — A cidade que deu vida a minhas primeiras lágrimas
Também te deu vida
Mas a tua alma não pôde voar tão alto como o meu pranto
Pois ele morava em um limbo dentro do meu coração. 

           — Tu vieste de uma casa cravejada de laranjeiras
Eu vim de uma casa que enterrou a última palmeira
em sua memória 

Nunca estivemos na mesma berma da estrada
Contudo, nossos encontros inquietam os guardas na encruzilhada de Nineveh. 

          — Nalgum lugar tua mulher te espera
Em todos os lugares mulheres circundam tua boca para não deixar que te percas
Em cada bairro uma rapariga desenha o pente da tua ausência nos cabelos
E oculta seus lamentos.  

          — Eu passei por três guerras e tantas outras derrotas
Mas eu nunca tinha esperado um guerreiro
Cada noite costumavas furtar uma estrela para encontrares teu caminho para mim
E quem matou a estrela nessa noite? 


 

 

 

Acetileno de Adrian Grima

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Tradução a partir da versão inglesa de Rui Cóias

 

 

Acetileno

 

Guindastes sobre o cais aguardam a sua carga.
Três gaivotas sobrevoam os motores
em círculos infindáveis
procurando os despojos flutuantes.
Para fora das vísceras.

Sob a plataforma de petróleo de Monrovia
eles estão torcendo o ferro com acetileno,
uma centelha como um insistente rumor se espalha pelo vapor azedo.
Essa chama,
é mais viva que a lua acima dos intestinos de Marsa,
mais espontânea,
mais azul que as sirgas de cobalto dividindo a doca do mar
de onde tudo se arrasta diante do vento.
Há um cargueiro atracado no cais,
ladeando um rebocador chamado Sea Patron.
Além, a porta de entrada para o porto.
Depois disso, só o vácuo. 

Entre as lascas de ferro fundido,
os feixes empilhados, os tubos emaranhados;
por detrás das entranhas amontoadas como correntes
num teatro de abandonadas cirurgias,
homens aparecem envergando seus uniformes
manchados pelo porto.
Seus olhos abrigam turnos de oito horas,
o lânguido movimento de seus capacetes amarelados
fitado
por três gaivotas. 

Espero as entranhas remexerem,
as vísceras pulsarem,
o sangue escorregando para o cinza,
o amarelo ser tingido de azul,
o cobalto começando a correr nas veias.
Espero por uma mão rasgando as janelas abertas,
entre os fuliginosos arcos,
as cruéis gaivotas mergulharem,
o mar sacudindo-se,
os barcos lentamente descolando do porto,
o velho Mediterrâneo a estremecer.
Espero os cães de ronda começarem incessantemente a latir,
para partir as correntes, estocadas na garganta do silêncio.
Espero os guindastes chiarem contra as suas cargas,
descarregando e carregando o convés,
um cais
alargando-se diante deles.  

Espero a alaranjada visão ser incendiada,
o cordame de cobalto aturdindo as profundezas;
eu espero algum profeta no céu enegrecido,
um cometa no abismo,
o tamborilar da luz do sol no coração. 

Eu espero pelo azedado odor,
a centelha,
o acetileno …

Aċitilena

 

Il-krejnijiet fuq il-moll jistennew it-tagħbija.
Tliet gawwijiet jittajru fuq l-inġenji
fi ċrieki li ma jagħlqux,
jistennew il-fdalijiet telgħin fil-wiċċ.
Mill-vixxri. 

Taħt ir-rigg taż-żejt minn Monrovia
qed jgħawġu l-ħadid bl-aċitilena,
xrara fil-fawra morra qisha xniegħa persistenti.
Tixgħel aktar mill-qamar merfugħ fuq l-imsaren tal-Marsa
dil-fjamma,
aktar spontanja,
aktar kaħla miċ-ċima ċelesti li tofroq il-baċir mill-baħar
bir-riħ jarmi kollox ’il barra.
Hemm barkun mistrieħ mal-moll,
u maġenbu l-lanċa tal-irmonk Sea Patron.
Lil hinn, xi mkien, id-daħla tal-port.
Lil hinn minnu d-dagħbien. 

Minn qalb il-pjanċi tal-ħadid,
it-travi fuq xulxin, il-kanen stivati,
minn wara msaren qishom ktajjen mitluqa gozz
f’teatru tal-operazzjonijiet abbandunati,
jitfaċċaw irġiel moħbija ġol-boilersuits
imtebbgħa bil-port.
Għandhom tmien sigħat xogħol
f’għajnejhom
u tliet gawwijiet josservaw
il-pass kajman tal-helmets sofor. 

Nistenna l-imsaren jitħarrku,
l-intern jistejqer,
id-demm jiġri fil-griż,
l-isfar fl-ikħal,
iċ-ċelesti jitlaq jiġri fil-vina.
Nistenna l-id tbexxaq bis-salt it-twieqi
tal-ħnejjiet imġemmdin,
il-gawwi jogħdos bla ħniena,
il-baħar jinħasad,
il-laneċ jinqalgħu bil-mod minn mal-moll,
il-Mediterran qadim jirtogħod.
Nistenna l-klieb tal-għassa jaqbdu jinbħu
bla ma jieqfu,
iqaċċtu l-ktajjen, iħebbu għas-skiet.
Nistenna l-krejnijiet jitbaqbqu mill-ġdid bit-tagħbijiet,
iħottu u jgħabbu fuq gverta mifruxa quddiemhom 
bħal port. 

Nistenna l-oranġjo jieħu n-nar,
iċ-ċelesti taċ-ċima jistordi qiegħ baċir,
nistenna profeta f’sema iswed,
kometa fl-abbiss,
tħarħira xemx fil-qalb. 

Nistenna r-riħa morra,
ix-xrara,
l-aċitilena...

 

Acetylene

Cranes on the pier await their cargo.
Three seagulls swoop over engines
in unclosed circles
scanning for floating scraps.
Out of the innards. 

Underneath the oil rig from Monrovia
they're bending iron with acetylene,
a spark like a persistent rumour spreads through sour vapour.
This flame,
it’s brighter than the moon above the bowels of Marsa,
more spontaneous,
bluer than the cobalt hawser separating dock and sea
where everything is driven out before the wind.
There’s a longboat hove-to against the pier,
beside it a tugboat called Sea Patron.
Somewhere beyond, the gateway to the harbour.
Beyond that, the void.

From among the sheets of cast iron,
the piled-up beams, stacked pipes,
from behind the guts heaped up like chains
in a theatre of aborted surgeries,
some men turn up ensconced in boilersuits
stained by the port.
Their eyes harbour eight-hour shifts,
their yellow helmets’ languid progress
watched
by three seagulls. 

I wait for the guts to stir,
the innards to pulsate,
the blood to run into the grey,
the yellow to be shot with blue,
the cobalt to begin to course through veins.
I wait for a hand to crack the windows open
between the sooty arches,
the ruthless gulls to dive,
the sea to take a jolt,
the boats to detach slowly from the pier,
the old Mediterannean to shudder.
I wait for guard dogs to start up their ceaseless bark,
to snap their chains, lunge for the quiet’s throat.
I wait for cranes to groan against their cargo,
to unload and load a deck,
a port
spread wide before them. 

I wait for the orange to catch fire,
the hawser’s cobalt dizzying the depths,
I wait for some prophet in a black sky,
a comet in the abyss,
the thrum of sunlight in the heart. 

I wait for the sour smell,
the spark,
the acetylene... 

(Translation from the Maltese into English by Albert Gatt)


 Um dos mais reconhecidos nomes da literatura maltesa contemporânea, Adrian Grima (Malta, 1968) escreve contos, ensaios e poesia, tendo apresentado o seu trabalho em todo o mundo. A sua obra encontra-se também traduzida e publicada em árabe, francês, alemão e italiano. Adrian Grima é fundador da Inizjamed e foi Director do famoso Festival Mediterráneo de Literatura de Malta, entre 2007 e 2018. Trabalha como Professor Associado de Literatura Maltesa na Universidade de Malta e como Leitor convidado na INALCO, París.