Poesia diante do espelho da morte

Em torno de algumas ideias de Antonio Gamoneda e de Vergílio Ferreira

                 

La poesía no sería posible – no existiría –

si no supiésemos que vamos a morir.

Antonio Gamoneda, El lugar de la reunión

 

O terror da morte nasce com o balanço do que se perde.

Vergílio Ferreira, Invocação ao meu corpo

 

 

                  É sobejamente conhecida a frase de André Malraux, retirada do romance L’Espoir, na qual o autor francês diz mais ou menos o seguinte: é a morte que transforma a vida em destino. Com efeito, uma vida eterna seria uma vida que constantemente se adiaria, uma vida inconclusa, um perpétuo devir que deixaria em permanente suspensão o significado último dos nossos actos. Apurar as consequências das nossas decisões seria tarefa vã: elas jamais deixariam de se actualizar e de se reproduzir. À sua frente estaria o infinito, a totalidade em potência, um horizonte de expectativas tão amplo que seria legítimo que cada um pensasse a cada momento que a sua vida até então tinha sido apenas preparação para uma nova vida que então começasse. Todos os nossos gestos se esvaziariam sem intenção derradeira que os sancionasse, e a memória seria ferida por cauterizar, ilegível cicatriz. Seria então – e não antes – que o homem estaria verdadeiramente condenado à sua liberdade.

                  É a morte, ou antes, é a consciência que temos de que vamos morrer, que põe a vida em perspectiva. É ela que a circunscreve e lhe dá unidade, e é através dessa consciência que ela adquire sentido, ou seja, que se apreende a si mesma como destino. Em suma, é porque morremos que nos sentimos viver.

Mas entre viver e sentirmo-nos viver há uma brecha que se abre, um espaço intermédio, desconhecido dos animais, por onde o fluxo vital que nos anima se escoa e se projecta para fora de si como uma espécie de excesso ou de saldo da nossa vida. A percepção do excesso que nos constitui é o que nos dá a consciência que temos de nós mesmos, e é através dela que começamos a ex-istir, isto é, a conceber-nos como projecto ontológico que extravasa a mera observância dos processos biológicos que garantem a nossa sobrevivência.

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