1) O Basquetebol é um desporto global, disseminado pelos americanos a partir da 1.ª Guerra Mundial (não prometo rigor científico, quero-me livre para uma escritura impressionista), mostrou adaptar-se bem às culturas onde os jogos populares vivem da relação bola/pé ou, noutro nível estrutural, do disparo de qualquer substituto simbólico e físico das bolas de canhão, contra o adversário (resquício claro dos campos de batalha pré-modernos), como o rugby e já o futebol, o ténis também, embora com essa aristocracia fingida de usar uma catapulta (raqueta) em vez de directamente o corpo, e não invadir explicitamente o campo do adversário. O Basket tinha tudo, até pelo nome (cesto), para cair no ridículo e afogar-se nas risadas dos homens, e algumas mulheres, de barba rija. Claro que os Marines eram tipos bem vistos, com aquele à-vontade de quem confia em Deus e masca pastilha elástica. Tinham também mais e melhores cigarros e chocolates. Foi, portanto, fácil, com esta batotice, transformar um jogo de bola saltitona e cestos de verga rotos num desporto digno.
2) Na segunda metade do século xx, com a fabulosa determinação americana para o divertimento de massas (o que permitiu alterações sucessivas nos regulamentos do jogo para o tornar mais espectacular e a permissão dos espectadores comerem e beberem alarvemente nas bancadas), a vantagem de ser um jogo indoor (como o hóquei no gelo) e o aparecimento, no último quartel do século, de jogadores fabulosos (refiro os que conheço melhor: Wilt Chamberlain, Karrem Abdul-Jabbar, Larry Bird, Magic Johnson, Moses Malone, e, já na viragem para o nosso século, Shaquille O’Neal e o magnífico Michael Jordan), tudo isto bem enquadrado pela relação entre NBA e Televisões nacionais americanas (contratos de transmissão mas também esquemas de recrutamento que facilitam um equilíbrio relativo entre meia dúzia de clubes) e uma passagem bem conseguida de jogadores brancos para jogadores negros, fez explodir a atractividade do jogo.
3) Em Portugal ficamos, contudo, presos a uma profunda modéstia, apesar do impulso que a chegada dos “retornados” das ex-colónias deu à modalidade na década de 70. Hoje vai-se jogando, há miúdos talentosos, alguns clubes bem organizados, zonas do país onde a prática e a formação inicial tem um certo fulgor (“margem sul” e à volta de Aveiro), mas o futebol moldou de tal forma os nossos jogos de pensamento e de emoções, facilita tanto a conversa de ocasião, é tão eficaz a produzir gritaria e cânticos de louvor à porrada e à sexualidade mais bestial, é tão profícuo no insulto, tão fácil de usar em guerrinhas políticas, tendo, além disso, por preguiça e seguidismo, a comunicação social constantemente “em cima do acontecimento”, com horas e horas de discursos sem sentido e de espuma no canto da boca sempre que os comentadores se digladiam em torno da justiça dos resultados. Lembramo-nos do jogador Lisboa, um “estremo” de qualidade europeia; de uma ou outra equipa (Benfica, Porto, PT); mas no resto, o Basket apenas obtém o favor de uma nota de pé de página no grande circo mediático e mental da cultura lusa.
4) Isso não invalida que seja um desporto extraordinário: praticado com regularidade desenvolve quase todo o espectro biomecânico dos jogadores, exige uma inteligência táctica muito superior à do futebol, níveis físicos elevados (apesar da recuperação após cada jogo ser mais rápida do que em desportos com esforço físico contínuo e prolongado) e uma cultura de equipa que mesmo quando deixa brilhar as estrelas é bem superior à de outros desportos colectivos, onde alguns elementos se podem desconectar do plano táctico (Cristiano Ronaldo joga por si, no Andebol há jogadores que só atacam...). Costumo aconselhar os pais preocupados com o sofãsismo e a obsessão multimédia dos filhos a porem os rebentos no Basket, parece-me ser um dos melhores sítios para retornarmos ao way of life grego do “corpo são em mente sã”. Relembro que este slogan era muito mais do que uma mera sugestão de fitness, para os gregos clássicos a vida sem desporto, sem teatro, sem guerra, sem política seria um erro.
5) Servem os 4 pontos anteriores para chegar ao mais importante: dar-vos a conhecer que também eu jogo o meu Basket, numa equipa multicultural e multianual (variam bastante as idades, as profissões, os interesses, os gostos...), aos Sábados de manhã no Estádio Universitário. Rondamos os 10 jogadores e somos “treinados” pelo Pedro. Parte da minha semana é pontuada por esse porto de abrigo onde sei que terei o prazer de correr e saltar, passar e lançar (encestando às vezes) uma bola. Chamo-lhe a minha metafísica da felicidade, que se transforma em física hedonista quando chega a hora do treino (se a filosofia fosse assim teríamos mais praticantes). Claro que também obtenho prazer noutros gestos físicos da vida, no ténis (que pratico imediatamente antes), nas caminhadas, nos abraços, nas mesas com comida ou bebida, na tagarelice... mas no Basket o corpo tem de dançar, os tiros têm de ser precisos (no lançamento ao cesto emerge a angústia e a coragem do caçador primitivo, por vezes recompensada), os passes exactos. Ataca-se já preparando a defesa, não há repouso, cada fragmento do jogo deve ter a intensidade máxima do presente e projectar desde logo o futuro próximo. No Basket joga-se com o tempo, i.e., mergulha-se nele para evitar as quebras da compartimentação passado/presente/futuro. Um jogador que se esqueça de defender quando ainda só está no início do lançamento é um mau jogador. E na defesa, o “cada um defende o seu” é apenas o início de algo de muito mais complexo, de constantes trocas e entreajudas, de laxismos astuciosos e estratégicas pressões de 2/1. A arte de defender está infinitamente mais desenvolvida no Basket do que em todos os outros desportos que conheço. Por exemplo, é impossível ser, como no futebol, um bom defesa sem uma inteligência de contexto e de previsão muito elevadas. Não basta ter talento físico e resiliência, é preciso ser um quase filósofo do desarme ou pelo menos da perturbação sistemática.
5.1) Mas fujamos do angelismo. Algumas vezes, juntando a natural imperfeição humana com pequenos egoísmos (espontâneos ou não), o treino agride o horizonte ético que em geral o cobre (mesmo se, com Michel Serres, se aprende mais ética no desporto do que em qualquer manual de bom comportamento). Assim acontece em todos os desportos, não fossem eles constituídos por jogos onde se ganha e perde. Os gregos, competidores inveterados, só reconheciam o fair play a quem ganhava. José Mourinho criou uma espécie de nova lógica da justiça: “é justo quem ganha”. Ora, também nós, no Basket de fim de semana que adoramos jogar, por vezes nos desentendemos (uma outra forma de dizer que cada um entende para seu lado). Mas é raro, porque somos crescidos (eu lidero o clube do Basket grisalho) e sabemos relativizar o irrelevante, mas também, talvez sobretudo, porque o Pedro, treinador e estrela da companhia (joga para lá do nosso campo de possibilidades, mas como dança com a bola não lhe levamos a mal, nem temos inveja) sabe abafar os pequenos arrufos, orientando os desorientados e esvaziando as energias vingativas que às vezes se levantam (num jogo, o caos aparece quando se acumulam demasiadas forças vingativas). Claro que alguns leitores julgarão que este panegírico ao treinador traz água no bico, talvez, mas isso é claramente falta de fair play.