Selfies

Quando somos adolescentes, sem sabermos muito bem como sair dos abismos onde de vez em quando caímos, procuramos editar imagens de nós próprios para definir um pouco melhor a identidade que nos vai desenhando um certo perfil. A isto chamou Lacan o “estádio do espelho”. Mas o que parecia ser um passo natural na passagem à vida adulta, tornou-se quase numa patologia social, superando em muito as fronteiras temporais dos 14-18 anos.

Na década de 60 sonhava-se, sobretudo na esquerda mais progressista, com um mundo onde cada um pudesse fazer a sua própria música, romance, livro de filosofia ou filme. Parece que caminhamos para isso, ainda agora descarreguei o iBooks Author, ferramenta que permite construir um livro multimédia em pouquíssimo tempo (tendo já o conteúdo). A “Me Generation” vinha povoar de alegria e autodeterminação o mundo do Pós-Guerra, entre o charro e a batucada ou guitarrada, os jovens queriam tomar o poder sem pedir licença aos angustiados e desconfiados adultos, traumatizados pelos horrores da Guerra e paralisados por uma austeridade moral que tinha tanto de hipócrita como de castradora do corpo e da mente. Sartre seguia os imberbes guedelhudos gritando-lhes metafisicamente ao ouvido que a relação mestre/escravo devia ser substituída por um aprofundamento do individualismo, embora solidário em abstracto, já que o “inferno são os outros”. Deleuze, apesar de pouco sartreano, apresentava o surfista como modelo do novo homem. Etc. etc.

Ora, os jovens foram envelhecendo e tomaram, como se prognosticava até por razões bio-demográficas, o poder. Mas, tendo em conta o yuppismo das décadas de 80/90, não foi para o partilharem na base de uma social-democracia igualitária e justa. Desenvolveu-se antes o mais radical dos individualismos de que há memória. O poder foi usado, por quem o obteve muitas vezes sem qualquer mérito, em exclusivo, tiranicamente.

Hoje, cheios de novas tecnologias que apregoam a partilha e a colaboração, boa onda de onde se publicitam quase todos os tipos de Redes Sociais, estamos na ressaca do egoísmo analógico do fim do século xx. Mas não entramos em contramão,  continuamos entalados na nossa bolha, headphones na cabeça e uma subjectividade amplificada quase até ao estoiro. Perdidos num som e numa consciência de si que desaparece poucos centímetros depois de cada círculo vital (o mapa mundo de cada um tem talvez menos alcance do que na Idade Média), temos agora, com a ajuda das tecnologias digitais, a possibilidade de nos fotografar e filmar e fazer circular a nossa imagem através do planeta, no estrato que realmente interessa: o do ciberespaço. Disso são testemunho os milhares de milhões de Selfies que povoam as Redes Sociais digitais.

Não que queiramos verdadeiramente partilhar-nos, o ultra-individualismo da livre escolha, do “vive à tua maneira”, transformou o auto-retrato num narcisismo estéril, desenvolvendo perigosos, até porque bastante inconscientes, igualitarismos solitários. Nunca nos divulgamos tanto, mas, paradoxalmente, nunca estivemos tão sós (a solidão do “isolamento” de que fala João Moita, a partir de Vergílio Ferreira, num post anterior). 

Me, Myself and I

Me, Myself and I

Cinismos

 Caspar_de_Crayer_Alexander_and_Diogenes, séc. XVII

 

Caspar_de_Crayer_Alexander_and_Diogenes, séc. XVII

O que hoje entendemos por “cinismo” tem pouco que ver com o cinismo grego antigo (daí alguns alemães usarem dois termos: “Zynismus”, para o contemporâneo; “Kynismus” para o antigo).

Enquanto Diógenes o Cínico dizia (é indiferente ser lenda ou facto histórico) a Alexandre o Grande – depois de este se oferecer para satisfazer qualquer um dos seus desejos – “Tira-te do meu sol!”, os cínicos actuais aspiram eles próprios a “um lugar ao sol”. Como refere Peter Sloterdijk, “a única coisa que têm na cabeça é baterem-se cinicamente – abertamente, sem tréguas – pelos bens deste mundo, coisa de que Diógenes zombava.” (Crítica da Razão Cínica)

O Kinismo (sigamos o exemplo alemão) foi uma filosofia, acoplada a certos modos de vida (mas, ao contrário do que muitos crêem, sem fazer a apologia simples de uma existência cândida e pitoresca), que desenvolveu o pensamento crítico e irónico mais potente da história. Pôs em causa toda a plêiada de necessidades que vão aparecendo (de fora e de dentro) para nos escravizar, fez uma radiografia crítica da desmesura e do supérfluo. Por isso terá dito que o ensinamento que retirou da filosofia foi o de estar preparado para todas as reviravoltas do destino, não se prendendo, pois, a nada.

Se Diógenes viesse visitar-nos, em vez de nos incomodar (como era seu hábito), ficaria ele perturbado: ensinou-nos, sem pedagogias especiais, a estarmos prontos para tudo, mas  mostramos-lhe que o nosso cinismo é o dos vitimistas materialistas, curvados sobre si mesmos, encaracolados, sem cura possível. 

Promessa de futuro

Paul Klee, Kömedie (pormenor), 1921

Paul Klee, Kömedie (pormenor), 1921

Nos comboios lisboetas fala-se pouco, a não ser quando estudantes em grupo abafam com tagarelice o futuro que não vislumbram. Mas sexta-feira um par de utentes conversava sem constrangimentos especiais sobre o estado da nação.

A páginas tantas (expressão da infância), a mais faladora disse: “Preciso de um desafio ao nível da minha ambição”. Não sei a que se referia (o resto da conversa fez pouco sentido), mas a frase encantou-me, como se fosse o leitmotiv justo para ao mesmo tempo descrever os “tempos sombrios” em que vivemos e projectar uma promessa de futuro.

Na verdade, falta-nos um desafio que funcione como uma faísca para despertar novas ambições de vida, de vida afirmativa, de vida sem medos. Parece que este país – e nós, todos nós, somos o país –, preso no ciclo de um niilismo podre, só nos pede para cairmos sem nos aleijarmos muito, nem encenarmos um alarido histriónico de civilizações periféricas, almofadados com lamentos e bodes expiatórios evanescentes (que é feito dos ódios teológicos contra o “Capital”, “Judeus”, “América”, “Patronato”, “Ricos”...?). Pedem-nos que sejamos cidadãos ingénuos, mecânicos e fatalistas, não passando nunca a acção de mera reacção. E assim vamos incorporando imensas negatividades como fado de estarmos vivos.

Não sei para onde vamos nem o que nos fará levantar a cabeça e voltar a rir como a “Criança” de Assim Falava Zaratustra. Estamos numa penumbra infinita e numa ambivalência fundamental. Mas às vezes o “que salva” está nos gestos e nas palavras mais banais, basta purificá-los com a generosidade do que se quer alcançar. Não é preciso continuar a comprar as coisas supérfluas que nos habituamos, ou que nos habituaram, a desejar quase acima da própria vida. Só precisamos de adoptar esta crise nas alturas da nossa coragem, coragem da liberdade antes de mais nada, que é maior do que muito do dinheiro que deixámos de ganhar. Mesmo se, como diz Sloterdijk, “O grande número recusará sempre, em nome do pão, a liberdade que lhe é oferecida.” (Crítica da Razão Cínica).

Sejamos insolentemente livres, é este o desafio que me faço e vos faço, tracemos novas linhas de vida sem pedir licença tanto aos profissionais do protesto como à censura da afirmação e da felicidade. Saibamos construir a nossa promessa de futuro.

Do Basquetebol

1) O Basquetebol é um desporto global, disseminado pelos americanos a partir da 1.ª Guerra Mundial (não prometo rigor científico, quero-me livre para uma escritura impressionista), mostrou adaptar-se bem às culturas onde os jogos populares vivem da relação bola/pé ou, noutro nível estrutural, do disparo de qualquer substituto simbólico e físico das bolas de canhão, contra o adversário (resquício claro dos campos de batalha pré-modernos), como o rugby e já o futebol, o ténis também, embora com essa aristocracia fingida de usar uma catapulta (raqueta) em vez de directamente o corpo, e não invadir explicitamente o campo do adversário. O Basket tinha tudo, até pelo nome (cesto), para cair no ridículo e afogar-se nas risadas dos homens, e algumas mulheres, de barba rija. Claro que os Marines eram tipos bem vistos, com aquele à-vontade de quem confia em Deus e masca pastilha elástica. Tinham também mais e melhores cigarros e chocolates. Foi, portanto, fácil, com esta batotice, transformar um jogo de bola saltitona e cestos de verga rotos num desporto digno.

2) Na segunda metade do século xx, com a fabulosa determinação americana para o divertimento de massas (o que permitiu alterações sucessivas nos regulamentos do jogo para o tornar mais espectacular e a permissão dos espectadores comerem e beberem alarvemente nas bancadas), a vantagem de ser um jogo indoor (como o hóquei no gelo) e o aparecimento, no último quartel do século, de jogadores fabulosos (refiro os que conheço melhor: Wilt Chamberlain, Karrem Abdul-Jabbar, Larry Bird, Magic Johnson, Moses Malone, e, já na viragem para o nosso século, Shaquille O’Neal e o magnífico Michael Jordan), tudo isto bem enquadrado pela relação entre NBA e Televisões nacionais americanas (contratos de transmissão mas também esquemas de recrutamento que facilitam um equilíbrio relativo entre meia dúzia de clubes) e uma passagem bem conseguida de jogadores brancos para jogadores negros, fez explodir a atractividade do jogo.

3) Em Portugal ficamos, contudo, presos a uma profunda modéstia, apesar do impulso que a chegada dos “retornados” das ex-colónias deu à modalidade na década de 70. Hoje vai-se jogando, há miúdos talentosos, alguns clubes bem organizados, zonas do país onde a prática e a formação inicial tem um certo fulgor (“margem sul” e à volta de Aveiro), mas o futebol moldou de tal forma os nossos jogos de pensamento e de emoções, facilita tanto a conversa de ocasião, é tão eficaz a produzir gritaria e cânticos de louvor à porrada e à sexualidade mais bestial, é tão profícuo no insulto, tão fácil de usar em guerrinhas políticas, tendo, além disso, por preguiça e seguidismo, a comunicação social constantemente “em cima do acontecimento”, com horas e horas de discursos sem sentido e de espuma no canto da boca sempre que os comentadores se digladiam em torno da justiça dos resultados. Lembramo-nos do jogador Lisboa, um “estremo” de qualidade europeia; de uma ou outra equipa (Benfica, Porto, PT); mas no resto, o Basket apenas obtém o favor de uma nota de pé de página no grande circo mediático e mental da cultura lusa.

4) Isso não invalida que seja um desporto extraordinário: praticado com regularidade desenvolve quase todo o espectro biomecânico dos jogadores, exige uma inteligência táctica muito superior à do futebol, níveis físicos elevados (apesar da recuperação após cada jogo ser mais rápida do que em desportos com esforço físico contínuo e prolongado) e uma cultura de equipa que mesmo quando deixa brilhar as estrelas é bem superior à de outros desportos colectivos, onde alguns elementos se podem desconectar do plano táctico (Cristiano Ronaldo joga por si, no Andebol há jogadores que só atacam...). Costumo aconselhar os pais preocupados com o sofãsismo e a obsessão multimédia dos filhos a porem os rebentos no Basket, parece-me ser um dos melhores sítios para retornarmos ao way of life grego do “corpo são em mente sã”. Relembro que este slogan era muito mais do que uma mera sugestão de fitness, para os gregos clássicos a vida sem desporto, sem teatro, sem guerra, sem política seria um erro.

5) Servem os 4 pontos anteriores para chegar ao mais importante: dar-vos a conhecer que também eu jogo o meu Basket, numa equipa multicultural e multianual (variam bastante as idades, as profissões, os interesses, os gostos...), aos Sábados de manhã no Estádio Universitário. Rondamos os 10 jogadores e somos “treinados” pelo Pedro. Parte da minha semana é pontuada por esse porto de abrigo onde sei que terei o prazer de correr e saltar, passar e lançar (encestando às vezes) uma bola. Chamo-lhe a minha metafísica da felicidade, que se transforma em física hedonista quando chega a hora do treino (se a filosofia fosse assim teríamos mais praticantes). Claro que também obtenho prazer noutros gestos físicos da vida, no ténis (que pratico imediatamente antes), nas caminhadas, nos abraços, nas mesas com comida ou bebida, na tagarelice... mas no Basket o corpo tem de dançar, os tiros têm de ser precisos (no lançamento ao cesto emerge a angústia e a coragem do caçador primitivo, por vezes recompensada), os passes exactos. Ataca-se já preparando a defesa, não há repouso, cada fragmento do jogo deve ter a intensidade máxima do presente e projectar desde logo o futuro próximo. No Basket joga-se com o tempo, i.e., mergulha-se nele para evitar as quebras da compartimentação passado/presente/futuro. Um jogador que se esqueça de defender quando ainda está no início do lançamento é um mau jogador. E na defesa, o “cada um defende o seu” é apenas o início de algo de muito mais complexo, de constantes trocas e entreajudas, de laxismos astuciosos e estratégicas pressões de 2/1. A arte de defender está infinitamente mais desenvolvida no Basket do que em todos os outros desportos que conheço. Por exemplo, é impossível ser, como no futebol, um bom defesa sem uma inteligência de contexto e de previsão muito elevadas. Não basta ter talento físico e resiliência, é preciso ser um quase filósofo do desarme ou pelo menos da perturbação sistemática.

5.1) Mas fujamos do angelismo. Algumas vezes, juntando a natural imperfeição humana com pequenos egoísmos (espontâneos ou não), o treino agride o horizonte ético que em geral o cobre (mesmo se, com Michel Serres, se aprende mais ética no desporto do que em qualquer manual de bom comportamento). Assim acontece em todos os desportos, não fossem eles constituídos por jogos onde se ganha e perde. Os gregos, competidores inveterados, só reconheciam o fair play a quem ganhava. José Mourinho criou uma espécie de nova lógica da justiça: “é justo quem ganha”. Ora, também nós, no Basket de fim de semana que adoramos jogar, por vezes nos desentendemos (uma outra forma de dizer que cada um entende para seu lado). Mas é raro, porque somos crescidos (eu lidero o clube do Basket grisalho) e sabemos relativizar o irrelevante, mas também, talvez sobretudo, porque o Pedro, treinador e estrela da companhia (joga para lá do nosso campo de possibilidades, mas como dança com a bola não lhe levamos a mal, nem temos inveja) sabe abafar os pequenos arrufos, orientando os desorientados e esvaziando as energias vingativas que às vezes se levantam (num jogo, o caos aparece quando se acumulam demasiadas forças vingativas). Claro que alguns leitores julgarão que este panegírico ao treinador traz água no bico, talvez, mas isso é claramente falta de fair play.

A democracia por vir

Eduardo Lourenço (de quem gosto muito, autografou o meu Labirinto da Saudade) disse há pouco tempo, noticiado pelo jornal Público (23/01/2014), que necessitávamos de uma “revolução democrática e eufórica”. Disse também, entre outras coisas, que a democracia era “a mais difícil das utopias que se inventou”. Ora, a “revolução democrática e eufórica” parece um baile de palavras, cada uma dançando para seu lado. Como pode haver uma revolução que mantenha a democracia? Se vivemos em democracia, a existir uma revolução (alteração radical do statu quo político) temos de projectar um regime político inverso. E o “eufórico”, que pretende Lourenço dizer com isso? A revolução seria uma festa, onde os destronados iriam festejar com os novos senhores?

Claro que a utopia democrática é difícil de realizar (até de antecipar em palavras, como mostram as experimentações de Eduardo Lourenço), mas é nisso que se deve trabalhar, a utopia deve estar presente em cada gesto de aperfeiçoamento que aqui e agora vamos inscrevendo na história. Para desenvolver um pouco mais um Labirinto da Democracia, continuo, mudando a inspiração, com Jacques Derrida.

Ponto de ordem: não tenho qualquer vontade de polemicar, quero somente pensar um pouco mais livremente a ontologia da Democracia. Por ontologia entendo a condição sine qua non de existência de alguma coisa, o “ser” de qualquer coisa; é neste sentido que afirmo “estar em Portugal” e não “ser português”, porque a minha nacionalidade é acidental. Daí defender a tese de que não democracia; mais: não deve haver, no sentido de uma coisa-em-si petrificada na sua essência. Já que quando isso acontece, ela esvanece, perde parte da sua vitalidade, pode até desaparecer. Na argumentação que se segue estão algumas ideias das obras de Derrida Spectres de Marx (Paris: Galilée, 1993); Politiques de l’amitié (Paris: Galilée, 1994); e, principalmente, Voyous (Paris: Galilée, 2003).

Para ele, a democracia tem uma doença intrínseca que a ataca sistematicamente, segundo intensidades e modalidades variáveis. O nome que lhe dá é o de “doença auto-imunitária” (“auto-immunitaire”), porque a democracia segrega necessariamente nela mesma elementos que a põem em perigo, que ameaçam mesmo a sua existência, conjurados muitas vezes através de decisões radicais conducentes ao suicídio. O exemplo paradigmático é o da Algéria de 1992 (perante a possibilidade dos islamitas ganharem as eleições, interrompeu-se o processo democrático). Para se imunizar, proteger contra os agressores (internos ou externos), a democracia tem, no limite, de escolher o suicídio. Só isso, por exemplo, teria evitado a subida ao poder dos modernos totalitarismos nazis e fascistas, de direita e esquerda. Desta forma, as democracias têm de traçar limites à sua própria condição democrática, têm que limitar o exercício democrático, o que em boa verdade se deve chamar contradição nos termos.

Quando se pensa nisto surge uma certa perplexidade, mas a imposição de interditos faz parte dos sistemas democráticos, nem que seja o da idade (por que só é permitido votar aos 18 anos em Portugal?) e da nacionalidade (por que não pode um Sírio recentemente imigrado votar nas próximas eleições europeias?). Em abstracto, trata-se de renovar a velha pergunta grega: “quem é digno de ser democrata, e a partir de que critérios?” É assim que para Derrida a democracia existe apenas na diferença que constantemente vai constituindo com o ideal, todas as democracias são impuras, inadequadas em relação ao modelo que desenham na areia.

Daí o conceito de “democracia por vir” (“démocratie à venir”), orbitando num quase vazio, diz Derrida, em contínuo movimento assimptótico. No limite, a democracia seria um não-regime, puro pragmatismo sem eidos, de uma plasticidade irredutível. Ou pelo contrário, o conceito, ou sintagma, “democracia por vir” denota uma outra forma de democracia? Derrida não é claro, mas avança a possibilidade de a “democracia por vir” designar o que está totalmente disponível para acolher o primeiro que chegue (“le premier venu”), o incondicional da alteridade, o estrangeiro mais estranho (passe a redundância).

Sabendo da impraticabilidade política desta sugestão, Derrida difere então no tempo essa nova democracia, dizendo que no presente ela deve ser pensada como promessa, uma promessa messiânica, embora sem qualquer messias (o messianismo seria uma espécie de estrutura sem figuração, Derrida chega mesmo a falar de uma messianidade sem messianismo – “messianicité sans messianisme” –, para se afastar das tradicionais teleologias). Só a promessa de ser incondicionalmente inclusiva (Derrida, recorde-se, foi banido da escola por ser judeu durante a segunda guerra mundial) e de viver sem restrições a vontade de justiça, permite que a democracia possa ultrapassar o mero utopismo retórico, se constitua como uma boa diferença em relação aos códigos estabelecidos, seja mesmo o crédito que hoje ainda se dá à sua tremenda imperfeição. Tanto mais que o “por vir” não é somente um futuro histórico, sempre adiado, é uma lança crítica e um suporte ao que hoje acontece. Por outro lado, nunca Derrida propõe que a democracia por vir resolva o problema da doença auto-imune de que falei acima, esta contradição deve antes ser aceite, discutida, mas sem qualquer proposta de purificação que trouxesse a perigosa coerência lógica à prática político-ética.

Cabe-nos, pois, a responsabilidade intransmissível de todos os dias, nos gestos mais singelos e até secretos, prepararmos a vinda da democracia por vir. Para evitar a pequena acusação de sebastianismo requentado, direi que isso se pode fazer em dois horizontes práticos: 1- questionar os códigos de exclusão que a compõem (num humanismo alargado que inclua premissas de éticas animal e ambiental); 2- combater os factores que a podem levar ao suicídio, i.e., transformá-la numa ditadura mais ou menos disfarçada. Noutros termos, precisamos de cuidar e desenvolver as promessas de igualdade (não apenas humana, repito-o) e de liberdade (“querer a própria liberdade é querer os outros livres”, Simone de Beauvoir).

 

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