A democracia por vir

Eduardo Lourenço (de quem gosto muito, autografou o meu Labirinto da Saudade) disse há pouco tempo, noticiado pelo jornal Público (23/01/2014), que necessitávamos de uma “revolução democrática e eufórica”. Disse também, entre outras coisas, que a democracia era “a mais difícil das utopias que se inventou”. Ora, a “revolução democrática e eufórica” parece um baile de palavras, cada uma dançando para seu lado. Como pode haver uma revolução que mantenha a democracia? Se vivemos em democracia, a existir uma revolução (alteração radical do statu quo político) temos de projectar um regime político inverso. E o “eufórico”, que pretende Lourenço dizer com isso? A revolução seria uma festa, onde os destronados iriam festejar com os novos senhores?

Claro que a utopia democrática é difícil de realizar (até de antecipar em palavras, como mostram as experimentações de Eduardo Lourenço), mas é nisso que se deve trabalhar, a utopia deve estar presente em cada gesto de aperfeiçoamento que aqui e agora vamos inscrevendo na história. Para desenvolver um pouco mais um Labirinto da Democracia, continuo, mudando a inspiração, com Jacques Derrida.

Ponto de ordem: não tenho qualquer vontade de polemicar, quero somente pensar um pouco mais livremente a ontologia da Democracia. Por ontologia entendo a condição sine qua non de existência de alguma coisa, o “ser” de qualquer coisa; é neste sentido que afirmo “estar em Portugal” e não “ser português”, porque a minha nacionalidade é acidental. Daí defender a tese de que não democracia; mais: não deve haver, no sentido de uma coisa-em-si petrificada na sua essência. Já que quando isso acontece, ela esvanece, perde parte da sua vitalidade, pode até desaparecer. Na argumentação que se segue estão algumas ideias das obras de Derrida Spectres de Marx (Paris: Galilée, 1993); Politiques de l’amitié (Paris: Galilée, 1994); e, principalmente, Voyous (Paris: Galilée, 2003).

Para ele, a democracia tem uma doença intrínseca que a ataca sistematicamente, segundo intensidades e modalidades variáveis. O nome que lhe dá é o de “doença auto-imunitária” (“auto-immunitaire”), porque a democracia segrega necessariamente nela mesma elementos que a põem em perigo, que ameaçam mesmo a sua existência, conjurados muitas vezes através de decisões radicais conducentes ao suicídio. O exemplo paradigmático é o da Algéria de 1992 (perante a possibilidade dos islamitas ganharem as eleições, interrompeu-se o processo democrático). Para se imunizar, proteger contra os agressores (internos ou externos), a democracia tem, no limite, de escolher o suicídio. Só isso, por exemplo, teria evitado a subida ao poder dos modernos totalitarismos nazis e fascistas, de direita e esquerda. Desta forma, as democracias têm de traçar limites à sua própria condição democrática, têm que limitar o exercício democrático, o que em boa verdade se deve chamar contradição nos termos.

Quando se pensa nisto surge uma certa perplexidade, mas a imposição de interditos faz parte dos sistemas democráticos, nem que seja o da idade (por que só é permitido votar aos 18 anos em Portugal?) e da nacionalidade (por que não pode um Sírio recentemente imigrado votar nas próximas eleições europeias?). Em abstracto, trata-se de renovar a velha pergunta grega: “quem é digno de ser democrata, e a partir de que critérios?” É assim que para Derrida a democracia existe apenas na diferença que constantemente vai constituindo com o ideal, todas as democracias são impuras, inadequadas em relação ao modelo que desenham na areia.

Daí o conceito de “democracia por vir” (“démocratie à venir”), orbitando num quase vazio, diz Derrida, em contínuo movimento assimptótico. No limite, a democracia seria um não-regime, puro pragmatismo sem eidos, de uma plasticidade irredutível. Ou pelo contrário, o conceito, ou sintagma, “democracia por vir” denota uma outra forma de democracia? Derrida não é claro, mas avança a possibilidade de a “democracia por vir” designar o que está totalmente disponível para acolher o primeiro que chegue (“le premier venu”), o incondicional da alteridade, o estrangeiro mais estranho (passe a redundância).

Sabendo da impraticabilidade política desta sugestão, Derrida difere então no tempo essa nova democracia, dizendo que no presente ela deve ser pensada como promessa, uma promessa messiânica, embora sem qualquer messias (o messianismo seria uma espécie de estrutura sem figuração, Derrida chega mesmo a falar de uma messianidade sem messianismo – “messianicité sans messianisme” –, para se afastar das tradicionais teleologias). Só a promessa de ser incondicionalmente inclusiva (Derrida, recorde-se, foi banido da escola por ser judeu durante a segunda guerra mundial) e de viver sem restrições a vontade de justiça, permite que a democracia possa ultrapassar o mero utopismo retórico, se constitua como uma boa diferença em relação aos códigos estabelecidos, seja mesmo o crédito que hoje ainda se dá à sua tremenda imperfeição. Tanto mais que o “por vir” não é somente um futuro histórico, sempre adiado, é uma lança crítica e um suporte ao que hoje acontece. Por outro lado, nunca Derrida propõe que a democracia por vir resolva o problema da doença auto-imune de que falei acima, esta contradição deve antes ser aceite, discutida, mas sem qualquer proposta de purificação que trouxesse a perigosa coerência lógica à prática político-ética.

Cabe-nos, pois, a responsabilidade intransmissível de todos os dias, nos gestos mais singelos e até secretos, prepararmos a vinda da democracia por vir. Para evitar a pequena acusação de sebastianismo requentado, direi que isso se pode fazer em dois horizontes práticos: 1- questionar os códigos de exclusão que a compõem (num humanismo alargado que inclua premissas de éticas animal e ambiental); 2- combater os factores que a podem levar ao suicídio, i.e., transformá-la numa ditadura mais ou menos disfarçada. Noutros termos, precisamos de cuidar e desenvolver as promessas de igualdade (não apenas humana, repito-o) e de liberdade (“querer a própria liberdade é querer os outros livres”, Simone de Beauvoir).